Folha de S. Paulo


Alcir Pécora e Francisco Foot Hardman: Os mil olhos do dr. Rogério

Em dois artigos publicados recentemente nesta Folha, o dr. Rogério Cezar de Cerqueira Leite mostra-se, antes de tudo, um "desvendador". Em seu estranho gabinete, em nome de sua fé na ciência absoluta, atesta "desordem do desenvolvimento neural" em Marina Silva.

No mesmo artigo destrambelhado, propaga a invencionice de que Marina Silva acredita num universo criado em sete dias e há apenas 4.000 anos. Com isso, condena a candidata do PSB como fundamentalista e criacionista.

Expande mentiras alheias e dá a elas ares de patologização da "paciente", que examina em seu antro de chavões. Mas dr. Rogério, de mil olhos vigilantes, acredita que sabe muito mais que Marina sobre o que ela acredita.

Assim, ele a declara mentalmente inepta por ser membro de uma igreja evangélica. Ele lhe imputa até a chefia de fabulosas "milícias marinistas", que não se sabe o que sejam e quais crimes cometeram. Se nos manifestamos contra a divulgação de mentiras ditas a respeito de Marina, aproveita para nos enfiar também no seu saco de histrionismos cientificistas. Que seja tudo pelo poder da ciência!

Para nós, no entanto, não há nada demais em que ela seja o que diz: cristã e evangélica. Nós não somos, mas ela é: qual a dificuldade em aceitar isso? Nenhuma, a menos que a verdade esteja com ele, o infalível papa da ciência, pois aí o resto é só superstição e desordem mental de retardados ou medíocres.

Pois bem. Queremos nos integrar ao esforço "desvendador" de outra maneira. Afirmando, por exemplo, que Marina não professa os dogmas do desenvolvimentismo a qualquer preço e do progresso sem fim. Não faz ouvidos moucos e vistas grossas para a ação devastadora de grileiros e madeireiros na Amazônia. Não partilha dos ideais do capitalismo predatório. Não acredita num futuro energético fincado apenas no império dos combustíveis fósseis.

O ambientalismo de Marina se baseia em amplas aquisições científicas internacionais, de alto índice de consenso, e não em crendices religiosas ou cientificistas, pouco importa ao sinistro impulso do dr. Rogério de detectar "defeito de percepção" nos neurônios da candidata.

Cerqueira Leite tampouco demonstra respeito humano ou intelectual pela história de Marina Silva, uma mulher extraordinária que, de origem pobre, negra, indígena, conseguiu se tornar líder seringueira, destacada militante de esquerda, ambientalista de importância internacional e professora de história.

Diante desses fatos, o dr. Rogério tem a pequenez dos arrogantes ao diagnosticá-la como portadora de "desordem neural". É contra isso que nos indignamos. Contra isso nos manifestamos para não deixá-lo fazer pose de grande senhor da ciência ou da Unicamp.

O dr. Rogério não nos representa. Antes, confessamos sentir desprezo por esse tipo de "desvendamento", que proclama a medicalização da política. A história contemporânea está farta de tragédias associadas a essa abominável receita.

O dr. Rogério, com seus mil olhos sombrios, sente-se mesmo eufórico por ter botado o dedo na ferida com seu artigo de ressonâncias lombrosianas. Ao menos aqui, concordamos com ele: pois não há ferida mais central, mais aberta, no Brasil e no mundo, do que a que invoca a ciência para justificar preconceitos e exclusões. Tal operação vil ele não poderá desvendar jamais, sob pena de ver ruir o seu incrível gabinete.

ALCIR PÉCORA, 60, e FRANCISCO FOOT HARDMAN, 62, são professores de teoria literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp

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