Folha de S. Paulo


Jorge Luiz Souto Maior: O MTST, o direito social e a fila

O MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) está sendo acusado, pela Promotoria de Habitação e Urbanismo, de "furar a fila" da habitação e também de exercer uma pressão ilegítima sob o poder público.

A estratégia de reprimir as reivindicações, pela força ou pelo argumento jurídico, não tem, entretanto, o respaldo da atual ordem constitucional. No atual estágio, ademais, os movimentos sociais nem sequer lutam por direitos. Buscam, isto sim, a concretização de direitos já conquistados.

Lembre-se que os direitos sociais, no pacto pós-Guerra, foram alçados à órbita dos direitos humanos, mas, por artimanha política, acabaram sendo incorporados pela lógica da "reserva do possível". Seriam normas de caráter programático. Nada mais que projetos a executar em conformidade com a conveniência do poder público.

Ainda que se admita essa restrição de eficácia, no mínimo não é possível recusar aos cidadãos a plenitude da organização política, para que possam pressionar os poderes públicos visando à implementação das ações necessárias ao cumprimento das promessas jurídicas.

Assim, é indevido aos poderes constituídos, que deixaram de cumprir a sua obrigação, valerem-se da afirmação de que não podem ser pressionados por aqueles que sofrem com sua inércia. Essa postura reflete o mais duro golpe na dignidade humana, que é o de negar à vítima o direito de se insurgir contra a agressão sofrida.

Ora, foi o artifício jurídico da "reserva do possível" que criou a fila, e é mesmo ilegal e imoral invocá-la como um direito. A fila só existe porque o compromisso político-jurídico não foi cumprido. Crianças sem escolas, sem creches, não podem ser colocadas em uma fila e serem atendidas quando chamadas, caso ainda estejam vivas. Menos ainda se pode visualizar essa fila como um direito ao qual o Estado, orgulhosamente, se apegue para deixar distante a visualização de sua responsabilidade.

O mesmo vale para as questões de moradia, trabalho digno, saúde, seguridade social etc., ainda mais quando se recorda que esse mesmo Estado tem permitido e até incentivado, cedendo às pressões econômicas, o desenvolvimento de um processo de acumulação da riqueza produzida cada vez mais distorcido.

O MTST pode até argumentar que não está sendo descumprido o preceito jurídico-formal da fila, na medida em que tem se valido da via paralela, legalmente amparada, do "Minha Casa, Minha Vida Entidades", pela qual uma entidade organizada, habilitada pelo governo, recebe financiamento da Caixa Econômica Federal, constrói as casas e indica os moradores.

O mais importante a ressaltar, porém, é que, para a construção efetiva da obra constitucional do direito social, deve ser garantida a atuação política para que as pessoas excluídas do sistema econômico, ou incluídas numa lógica de exploração, possam se organizar para tensionar a realidade, expondo publicamente os seus problemas e formulando suas reivindicações pelos métodos de luta que lhes pareçam mais eficazes para que sua voz seja ouvida.

O direito social confere valor jurídico ao "grito dos excluídos", para que sua voz incomode ao ponto das desigualdades econômicas não serem mais suportadas. Empurrar as filas e criar embaraços na sua acomodação fazem parte da dinâmica política necessária para revelar a desordem que as filas representam.

A "desordem" social é um método importante para se buscar a ordem efetiva. Afinal, não se pode conceber que a soma das inteligências e esforços histórica e dialeticamente construídos nos conduza ao preceito moral e jurídico de que "todos têm o direito de ficar na fila, até morrer".

JORGE LUIZ SOUTO MAIOR, 51, é professor da Faculdade de Direito da USP, juiz do trabalho e membro da AJD (Associação Juízes para a Democracia)

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