Folha de S. Paulo


Leopold Nosek: Sófocles, Dionísio, Messi e Neymar

Tenho alguns amigos, poucos e dignos de perdão –após seu arrependimento, claro–, que desdenham da Copa e se referem a essa maravilha como um desprezível pão e circo alienante. Chegam a advogar a torcida contra o Brasil, cuja derrota funcionaria como remédio para que o povo, caindo em si, vote consciente. Arautos da falência brasileira esperaram em vão os estádios caindo, os aeroportos em caos e manifestações a confirmar suas opções. Não vejo nada disso. Mas não discutirei política; falarei como corintiano irrecuperável que sou.

Tomei um avião, em 2000, para o Rio de Janeiro para ver meu time ser campeão mundial interclubes e usufruí do prazer de ver meus manos, para pedirem uma cerveja, chamarem a aeromoça de cobradora. Fui ao Japão e vi a galera gastar seu inglês ao gritar "fok iou, Chelsi".

Como psicanalista, me perguntam como explicar o choro, o nervosismo, a catarse. Como poderia ser diferente? Futebol não é pão e circo. Com mais propriedade, pode ser considerado um festival dionisíaco ou uma competição teatral no século de Péricles. Os espectadores não assistiam a esses concursos circunspectos e silenciosos como os bem pensantes o fazem hoje. Sófocles, Ésquilo e Eurípides eram ruidosamente aplaudidos e apupados, inclusive em cena. Torcia-se, reclamava-se. Juízes eram xingados, tal como no futebol.

Quando o cronista esportivo Aristóteles tabulou as regras de como se devia praticar o esporte dramático, praticamente todas as tragédias já haviam sido escritas. Aparentemente, tudo continua igual. Hoje entramos noite adentro tecendo teorias em relação ao drama que já acorreu e cada cronista sabe melhor como se deveria ter jogado.

Ouso dizer que o futebol é o teatro grego atual: tem eficácia simbólica para representar a vida. Sobre a alegoria dionisíaca carnavalesca, possui a vantagem de não ter um enredo fixo e, tal como na vida, a repetição é impossível. Assim, a épica do acontecimento e seus heróis será comentada em verso e discussões madrugada adentro por décadas, estendendo-se o debate pelas gerações futuras. Obrigatoriamente, temos que nos interrogar acerca da eficácia simbólica do futebol.

Em primeiro lugar, o momento definidor: futebol se joga com os pés. O pé é obviamente impróprio para lidar com uma bola que pesa 450 gramas e corre sobre a grama, irregular. Próprias são as mãos, mas seu uso configura impropriedade que, se reiterada, pode custar a expulsão. A resultante maravilhosa é que, à medida que é praticado com órgãos impróprios, a regra será o erro. O zero a zero não é estranho, e dois ou três acertos serão suficientes. Não é uma mimese da vida? Além de o acerto ser exceção, outras características imitam o cotidiano: o melhor não ganha do pior necessariamente. Nem os bons são recompensados, nem os ímpios queimam no inferno. Pode acontecer, mas não é a regra.

Como Freud definiu, há o instinto de vida e o de morte, e esses conceitos marcam sua presença nos campos. Para quem duvida, aí está o impactante gol contra. Alguém já viu esse episódio suicida no basquete, no vôlei, beisebol ou tênis?

A sorte tem lugar essencial. Temos o arbítrio, mas as moiras indefiníveis estão presentes, e a bola bate na trave levando a vida ao inescrutável. Não podemos deixar de sorrir, lembrando o mestre vienense e sua obsessão pela sexualidade, que o objetivo é meter a bola na rede. Não deixa de ser um ato incestuoso, definitivamente edipiano, o gol contra. A culpa é avassaladora.

O futebol também ilumina o mundo e a globalização: não conheço muitos dos jogadores da nossa pátria, jogam no exterior. As fronteiras se desfizeram. Restou um fundamentalismo patriótico, felizmente na Copa, efêmero e lúdico. A imagem se tornou soberana e milionária. Os clubes se tornaram empresas, a Fifa uma multinacional, os cronistas são pessoas jurídicas e nós continuamos fornecendo matéria-prima.

Poderíamos estender muito o espaço da importância do jogo simbólico subjetivo, mas isso não é novidade. Uma eliminação causará luto, e se ainda nos perguntarmos acerca do choro, é simples: acomete quem vê a morte de perto.

PS: O artigo já estava escrito quando ficou esclarecido para mim o episódio Neymar. Como no teatro grego, também ocorre no futebol o inominável, o que os deuses não perdoam, o que ultrapassa o humano e deve ser excluído. Força, Neymar!

LEOPOLD NOSEK, 67, psiquiatra pela Faculdade de Medicina da USP, é psicanalista e ex-presidente da Federação Psicanalítica da América Latina

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