Folha de S. Paulo


Inês Soares e Marcelo Torelly: Cooperação econômica com a ditadura

A ditadura brasileira foi uma concertação entre atores públicos e privados, nacionais e internacionais. Acontecimentos dos últimos meses demonstram que ainda há muito o que se investigar sobre seus arranjos e protagonistas.

Os documentos recolhidos na casa do coronel reformado Paulo Malhães, morto em circunstâncias suspeitas um mês depois de depor na Comissão da Verdade, o aparecimento, no arquivo da Escola Superior de Guerra, de acervo que sugere apoio logístico e financeiro de empresários da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) no golpe de 1964 e a afirmação do coronel reformado Erimá Moreira sobre "malas de dinheiro recebidas pelo general Amaury Kruel" do então presidente Fiesp, na mesma época, apontam para formas de cooperação com o regime militar ainda pouco conhecidas.

Os dispositivos legais à disposição da CNV dão abertura para a investigação do agir de instituições públicas ou privadas, permitindo avançar do paradigma da responsabilidade estatal abstrata para o da responsabilidade compartilhada entre atores públicos e privados devidamente individualizados. Possibilitam, ainda, uma melhor aplicação das normas processuais para defesa dos direitos humanos.

As experiências internacionais indicam que os governos precisam de marcos regulatórios para restringir o crédito, público e privado, a projetos potencialmente lesivos aos direitos humanos, inclusive com indicativos que autolimitam sua concessão a iniciativas de risco social ou ambiental.

A ideia de "responsabilidade social" chama as corporações para se engajar voluntariamente no processo de acerto de contas com o passado. E nota-se o amadurecimento das reflexões: em junho de 2014, o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou uma resolução para responsabilizar as transnacionais por eventuais violações de direitos humanos.

No Brasil, a responsabilidade sem culpa da pessoa jurídica por danos a direitos coletivos em questões ambientais e nas relações de consumo é uma realidade. A responsabilização pela cumplicidade econômica com a ditadura se enquadra na mesma categoria.

Foi o que aconteceu recentemente em cortes norte-americanas, que responsabilizaram empresas por violações praticadas na África do Sul, Palestina, Colômbia e Nigéria; na Argentina, com a adoção de medidas criminais por violações "contra a humanidade" praticadas por multinacionais como a Ford; no Chile, com o pedido de perdão da Associação Nacional dos Magistrados pelas omissões do Poder Judiciário; e mesmo no Brasil, com o polêmico editorial no qual as Organizações Globo reconheceram ter errado ao apoiar o golpe e a ditadura.

Esses exemplos levantam questionamentos sobre o que se esgota quando as corporações assumem seus erros, bem como o quanto é necessário que a empresa invista em projetos de reparação.

No Brasil, há um aparato jurídico para reparação coletiva do dano causado pela cumplicidade de empresas com a ditadura. Instrumentos e ferramentas jurídicas de tutela coletiva como a ação civil pública, a inversão do ônus da prova, a responsabilidade civil objetiva, a vulnerabilidade das vítimas da ditadura e termos de ajustamento de conduta podem ser utilizados com êxito.

Atores privados podem se engajar na construção de políticas de memória e não repetição, crivando uma distinção entre sua atuação passada e presente. As medidas coercitivas e de judicialização de conflitos não encerram o tema. O que se discute é a possibilidade de reconhecimento público de que ações e omissões de empresas ou corporações causaram graves danos a cidadãos e possibilitaram a violação a direitos humanos. Esse ainda é um debate pendente em nossa agenda democrática.

INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES, 46, doutora em direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), é procuradora regional da República em São Paulo
MARCELO TORELLY, 29, doutorando em período sanduíche na Faculdade de Direito e no Centro Latino-Americano da Universidade de Oxford (Reino Unido), é autor de "Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito" (Fórum)

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