Folha de S. Paulo


Alexandre Delijaicov e Ricardo Nunes: Hidrovias em São Paulo

A embrionária metrópole fluvial, com meios de deslocamento formados por um sistema hidroviário, estava latente na fundação de São Paulo, que reuniu aldeias indígenas localizadas entre rios. Os portugueses continuaram com um sistema de navegação no planalto paulista até o início do século 20. Canoas e batelões navegavam no Tamanduateí, Tietê e Pinheiros e atracavam nas aldeias porto-fluviais. O porto geral era o São Paulo do Piratininga (Tamanduateí) e as embarcações atracavam onde hoje é a rua 25 de Março: a rua do cais do porto geral.

Se hoje a cidade tem os problemas que tem e um transporte que não atende à sua população é porque estamos submetidos a um "urbanismo" mercantilista e rodoviarista: invadimos e vendemos as várzeas dos rios Tamanduateí, Tietê, Pinheiros e seus afluentes. Transformamos os rios em canais estreitos de esgoto a céu aberto. Pior, os cursos d´água foram emparedados por rodovias urbanas –as marginais, avenidas de fundo de vale, de trânsito expresso e pesado.

Nossa fragilidade institucional aliada à falta de cultura de projeto com alicerce humanista, social, público e coletivo, vem construindo o desastre de um acampamento improvisado com frota de milhões de carros que promovem desencontro, a desconfiança e o medo.

Felizmente, a cidade é a invenção mais extraordinária da humanidade e é uma obra de arte aberta e inconclusa. Precisamos conquistar a difícil arte de construção coletiva do nosso lugar.

O prefeito Fernando Haddad vem enfrentando a questão dos deslocamentos com coragem, com o bilhete único mensal e outras medidas de incentivo ao uso de veículos não motorizados.

Mas é preciso que se leve adiante uma proposta que ao mesmo tempo em que resgata a "metrópole fluvial embrionária", coloca São Paulo na vanguarda entre as cidades que pensam o planejamento. Está no Plano Diretor Estratégico em discussão na Câmara o estabelecimento das hidrovias como diretriz de transporte, que soma-se ao projeto de lei nº 54/2013, de autoria do vereador Ricardo Nunes, já aprovado na Câmara e sancionado pelo prefeito Haddad, criando o sistema de transporte hidroviário do município e que deu origem à lei nº 16.010/2014.

O projeto traz conceitos inéditos, certamente no Brasil e talvez no mundo, de hidrovias urbanas, navegação fluvial urbana e transporte fluvial público (de cargas e passageiros), que há anos se debatem na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Preconiza visão sistêmica dos cursos d´água, com redes de navegação que somam-se a uma mentalidade de preservação e integração à cidade, com estudos e ações voltadas para as questões de transporte e saneamento.

Se as primeiras embarcações que navegavam por São Paulo chegavam à região da rua 25 de Março e existia uma conexão da cidade com os cursos d´água, e isso foi suplantado por uma política inadequada, o projeto retoma o assunto, com viabilidade e unindo-se a uma necessidade emergencial da cidade.

A criação do sistema hidroviário municipal de parques e portos ao longo dos canais dos rios Tietê e Pinheiros e das represas Guarapiranga e Billings contribui para gestão integrada, intersetorial e intermunicipal mirando no uso múltiplo das águas e no desenvolvimento urbano da orla, com a implementação de bulevares e redes de equipamentos de cultura, esportes e lazer que fomentem a cultura fluvial urbana tais como balneários municipais e cais culturais.

O sistema hidroviário articula as políticas nacionais de mobilidade urbana, recursos hídricos e resíduos, com o entendimento de que a qualidade das águas urbanas está visceralmente ligada à qualidade da gestão dos resíduos sólidos urbanos. Já o transporte de cargas pode viabilizar conceitos de logística reversa e ecologia, com cargas recicláveis e orgânicas, como materiais de podas de parques e jardins para biodigestores localizados em portos de reciclagem.

A nova lei estabelece a implementação de portos para embarcações com ar condicionado que farão o deslocamento pelas represas e futuramente nos rios Pinheiros e Tietê. Além disso, permite a implementação por meio de parceria público-privada, sem despesas para o município.

É preciso haver uma reconquista coletiva da cidade, o que envolve que os cidadãos tenham relação diferente com os espaços públicos e com as possibilidades que ele oferece. O cidadão poder ver o rio e a represa de outra forma.

Isso se não considerarmos somente os potenciais benefícios que traria para os deslocamentos de 2 milhões de pessoas que vivem na zona sul da cidade, em bairros como Grajaú, Pedreira, Jardim Ângela e Colônia Parelheiros. Trajetos que hoje demoram duas horas poderiam ser resumidos a 20 minutos, com integração ao Bilhete Único e conexão às redes de ônibus, metrô e CPTM, fazendo com que uma parcela enorme da população ganhe qualidade de vida e acesso adequado à cidade.

ALEXANDRE DELIJAICOV, 52, é professor e coordenador do grupo Metrópole Fluvial da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
RICARDO NUNES, 47, empresário, é vereador e líder do PMDB na Câmara Municipal de São Paulo (PMDB)

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