Folha de S. Paulo


Malu Nunes: A última gota

A crise no sistema Cantareira, que abastece quase dez milhões de pessoas na Grande São Paulo e no interior, é um exemplo concreto de que o abastecimento de água pode ficar comprometido também em outras cidades do Brasil. Ainda que tenhamos uma visão otimista, os últimos episódios de seca no Sudeste e no Sul mostram claramente que há urgência na implantação de ações de conservação para a manutenção dos recursos hídricos no país.

De acordo com o "Atlas do Brasil" de abastecimento urbano de água, produzido pela Agência Nacional de Águas (ANA), há quatro anos grande parte dos sistemas produtores instalados no país estava no limite máximo de sua capacidade operacional. Atualmente, as duas maiores regiões metropolitanas do Sudeste –Rio de Janeiro e São Paulo– têm o abastecimento de água garantido porque é realizada a transferência de grandes vazões de mananciais localizados em bacias hidrográficas próximas. São duas fontes que começam a ficar saturadas porque servem a milhões de consumidores.

Não podemos credenciar, porém, os motivos para a crise de abastecimento somente ao consumo excessivo e ao mau uso da água por parte da população. A questão é mais complexa: vai desde a falta de políticas públicas que incentivem a proteção dos mananciais ao desmatamento de áreas naturais, o qual altera o ciclo da água e a variabilidade de chuvas nas regiões onde antes predominavam.

É necessário avaliar ciclo da água de modo global. Por exemplo, no caso da Amazônia, há o fenômeno dos "rios voadores", massas de vapor de água que se formam no oceano Atlântico e aumentam de volume ao incorporar a umidade evaporada pela floresta. Levados pelas correntes de ar em direção ao sul do país, elas são importantes para a formação de chuvas em diversas regiões. Portanto, o aumento no desmatamento da Amazônia pode reduzir os índices pluviométricos em outras regiões.

Sem as áreas naturais, a água não realiza o seu ciclo natural, que inclui a evaporação, formação das nuvens e das chuvas nas cabeceiras dos rios que alimentam as bacias hidrográficas do país, causando desequilíbrio.

É essa situação que acontece no caso do sistema Cantareira, considerado um dos maiores sistemas produtores de água do mundo. As chuvas têm caído pouco, mesmo no período das cheias que terminou em março, nas cabeceiras dos rios que formam represas do sistema. Isso reduziu os fluxos de água nos rios, de modo que os níveis de suas represas começaram a baixar rapidamente. A redução da disponibilidade hídrica resultou na crise de abastecimento à população.

E agora, o que fazer diante dessa grave situação? Os governos federal, estaduais e municipais precisam buscar mecanismos para melhorar a gestão da água e garantir a segurança hídrica necessária à população e à economia do país. A proteção dos recursos deve ser feita em conjunto pelos diversos setores da sociedade. Para isso, é necessário criar e implementar unidades de conservação –áreas protegidas primordiais para garantir a defesa dos recursos naturais.

É fundamental proteger as matas ciliares e as nascentes dos rios também em propriedades rurais, evitando a poluição e o assoreamento e assegurando margens arborizadas, de modo que a água infiltre lentamente o solo e possa cumprir o seu ciclo de maneira regular. Nesse contexto, é importante a manutenção de reservas legais e das Áreas de Proteção Permanente (APPs).

O problema de escassez da água não é somente de São Paulo. O desafio é garantir o abastecimento às grandes cidades brasileiras nos próximos anos, uma vez que é previsto aumento das demandas de consumo. São necessários investimentos urgentes para a adequação dos sistemas produtores de água, sobretudo no Sudeste, e planejamento para otimização de uso das fontes hídricas. Além disso, a proteção de áreas naturais é condição "sine qua non", pois a qualidade e a quantidade de água produzida pela natureza dependem da manutenção da vegetação nativa.

MALU NUNES é engenheira florestal e diretora-executiva da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza

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