Folha de S. Paulo


Michel Nicolau Netto: A perversidade do silêncio e do deboche às atitudes racistas

A prática de jogar bananas nos campos de futebol se tornou uma triste, mas comum demonstração de racismo. Incomum foi o gesto de Daniel Alves ao lhe ser arremessada a fruta: ao invés de ignorar, entregar a banana ao juiz ou se revoltar com a ação –como ocorrera com outros jogadores e mesmo com um árbitro em outras ocasiões– Alves ironicamente a descascou e comeu.

Passo contínuo, Neymar criou uma hashtag no twitter em explícito apoio a Alves com o nome: "#somostodosmacacos". Na hashtag, uma foto de Neymar com seu filho, ambos sorrindo e segurando bananas descascadas: a de Neymar de verdade, a da criança de pelúcia. A postura de Neymar imediatamente se espalhou pela internet e inúmeras pessoas, entre celebridades e desconhecidos, repetiram sua pose pelo mundo. Vários dias após o acontecido, a ação de Alves e a campanha de Neymar ainda são o assunto do momento.

O ato de Alves certamente foi um ato político, mas ainda aberto a diversas interpretações. Foi a atitude de Neymar que lhe deu o sentido pelo qual passou a ser lido: o deboche é o melhor remédio ao racismo e se a pessoa não se importa com ele, ela não é atingida. Mais tarde, no mesmo dia, Neymar colocou um vídeo em sua página do Facebook compartilhado em todo mundo. O vídeo, já se sabe, foi elaborado por uma agência de publicidade e traz a clara mensagem:

"Infelizmente o racismo é uma realidade. Mas uma realidade que a gente pode mudar. E a melhor maneira de quebrar o preconceito é tirar seu peso, fazendo a pessoa preconceituosa se sentir sem poder. (...) Tem uma coisa que todo mundo aprende desde cedo: uma ofensa só pega quando irrita você. Vamos acabar com isso. #somostodosmacados".

Nos últimos tempos, com a replicação de atitudes como a que ocorreu contra Alves, o debate sobre ações racistas nos estádios se impôs. Esse debate acabou gerando diversas posições que podem ser ordenadas em três grandes grupos. Há aqueles que entendem que deve-se punir o agressor, e tão somente o agressor. Há os que defendem a punição ao clube do torcedor. E, por fim, os que preferem que a agressão seja ignorada ou debochada.

Essa última é a que me interessa discutir, pois é nela que a ação de Alves e Neymar se inserem. Essa atitude, mesmo antes do ocorrido, já fora proposta por importantes personalidades do futebol, como o técnico da seleção Luiz Felipe Scolari. O caso ocorrido nos últimos dias no basquete norte-americano recebeu uma resposta parecida. O dono do Los Angeles Clippers, um dos times da NBA, a liga profissional de basquete dos Estados Unidos, foi flagrado aconselhando sua namorada a não se mostrar publicamente com negros, nem levá-los aos jogos de seu time. A divulgação desse diálogo gerou diversas manifestações contra o empresário, incluindo a do presidente Barrack Obama, que, entre outras coisas, disse: "quando pessoas ignorantes querem propagar suas ignorâncias, nós não temos que fazer nada, você os deixa falar".

A lógica expressa nesse posicionamento é que ao se combater a agressão, o que se faz é dar repercussão ao ofensor e, por consequência, visibilidade ao racismo. É com base nesse tipo de argumentação que o partido nazista, NPD, não é banido na Alemanha e muitos de seus atos ocultados pelos próprios políticos que sofrem suas agressões. Argumenta-se, para tanto, que assumir que o NPD é nazista e que suas atitudes remetem ao nazismo, o que levaria a banir o partido, seria dar repercussão ao próprio discurso que seus praticantes querem divulgar.

Contudo, as ações de Alves e Neymar colocam um novo ingrediente nesse posicionamento. A questão agora posta é que não apenas se impeça, pelo silêncio ou deboche, a repercussão do ato racista, mas que a vítima, e não apenas os meios de comunicação, adotem o silêncio ou o deboche. Em outras palavras, o que se argumenta é que se a vítima não se importar com o racismo ele deixa de existir. É claro que as atitudes dos jogadores e boa parte das pessoas que lhes mostraram apoio são bem-intencionadas. No entanto, entendo que elas não percebem que essa posição também pode ter efeitos perversos.

Em primeiro lugar, a posição de deboche ou silêncio em reação ao racismo transfere a atitude racista à vítima. Quem tornaria a atitude um ato racista não seria quem jogou a banana ou gritou macaco, mas quem se sentiu atingido com isso. Isso porque, segue o argumento, quem simboliza a banana ou o macaco como índices racistas não é quem agride, mas o agredido. Tanto assim que basta que o agredido não se importe com a ação (ou que transforme a banana em uma simples fruta ou o macaco em um simples animal) para que o racismo desapareça. Quem pratica homofobia, então, não seria apenas quem grita bicha, mas quem acha que bicha é xingamento. A vítima, portanto, ao dar eficácia simbólica à agressão, se torna também responsável pela atitude racista.

Em segundo lugar, a posição do silêncio ou deboche exige da vítima um esforço psicológico que nem todos estão em condições de fazer e, mesmo se estiverem, talvez não estejam dispostos a isso. Sentir-se agredido pelo racismo passa a ser, portanto, a medida de uma capacidade do sujeito. Aquele que não consegue, agora, além de ser agredido pelo racismo se torna um fracassado, pois foi incapaz de simplesmente ignorar a agressão.

Esse sujeito se torna duplamente agredido, portanto: é macaco (pois sente isso como um xingamento) e um fracassado. Há pessoas, contudo, que simplesmente não estão dispostas a ignorar uma agressão e a elas não se pode imputar tal obrigação. É um direito seu –para dizer o mínimo– sentir-se atingida por um xingamento. Ainda, há aquelas que não possuem condições psicológicas para suportar a agressão. Sua história de vida, de sua família, sua posição na sociedade e sua condição econômica, podem ser fatores que tornem para elas insuportável a agressão.

É claro que a pessoa que sofre racismo deve ter o direito de lidar com ele da maneira como lhe for melhor. E isso vale para Alves e Neymar. Se suas atitudes lhes valem um alívio na dor da agressão que sofreram, elas são válidas. A questão é transformá-las em programa de combate ao racismo.

Ignora-se também o impacto midiático e, ao mesmo tempo, a especificidade da esfera do futebol em circulam esses jogadores. De fato, a atitude racista contra Alves e Neymar pode ser mais sentida por eles como uma agressão simbólica do que pela maior parte das pessoas que sofre racismo. Ser negro, no futebol deste nível de competição, não impede a contratação de um jogador, provavelmente não interfere no valor de seu salário. O fato de Alves e Neymar serem personalidades cujos nomes e rostos são conhecidos mundialmente também garante que dificilmente tenham maiores dificuldades em suas vidas cotidianas por serem percebidos como negros. Eles dificilmente serão expulsos de estabelecimentos, dificilmente não serão aceitos em festas, provavelmente não serão abordados pela polícia com violência etc.

De fato, para eles, o peso do racismo se dá especificamente no aspecto psicológico. Para eles, a atitude racista realmente é um xingamento. Um xingamento forte, certamente doloroso, mas que, como xingamento, pode ter como prescrição a ignorância. Neymar trata o racismo como o apelido desagradável que a criança tem na escola. E indica sua profilaxia da mesma maneira: não liga, que não pega. Talvez para ele.

Para a maioria das pessoas que sofrem racismo, contudo, a agressão é muito mais do que um xingamento. Ela significa uma extensa lista de barreiras para suas atuações na sociedade. Para elas, portanto, não basta ignorar a agressão, pois o racismo está presente nas práticas sociais, limitando suas condições de vida. As atitudes de Neymar e Alves apenas piora os efeitos do racismo sobre elas. São elas agora as culpadas pela eficácia da agressão que sofreram e fracassadas por não conseguirem simplesmente ignorá-la.

O futebol, especialmente na esfera em que Neymar, Alves e Scolari se inserem, poderia ter outra função. Por mais que nele algumas pessoas possam se sentir protegidas de algumas consequências do racismo, ele pode ser o espaço em que a luta contra o racismo se torna aberta. O racismo ali não deve ser tolerado e as atitudes para tanto devem ser as mais veementes e irem muito além de palavras vãs da Fifa, da CBF ou da Uefa: o clube deve ser punido, o agressor preso e banido dos jogos e os jogadores devem abandonar o campo. No extremo, campeonatos devem ser suspensos. E isso não para mera proteção dos jogadores, que talvez se sintam melhores ignorando o racismo, mas para a proteção dos que não podem ignorá-lo.

MICHEL NICOLAU NETTO, 35, é doutor em sociologia e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi professor visitante na Universidade de Columbia, em Nova York

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