Folha de S. Paulo


Roberto Delmanto: Desaparecidos

Como disse certa vez um de seus eminentes ministros, o Supremo Tribunal Federal acerta e erra por último. Eu acrescentaria: por ser a derradeira instância do Judiciário, contra a qual não cabe qualquer recurso, suas decisões, embora devam ser preponderantemente jurídicas, precisam também ser políticas para preservar o equilíbrio institucional.

Com acerto ou erroneamente, a história melhor dirá, o Supremo decidiu que a Lei de Anistia se aplica aos dois lados: vale tanto para os crimes dos agentes da repressão quanto para os dos que combatiam a ditadura militar. Foram extintas, assim, as punibilidades dos crimes de homicídio, tortura e lesões corporais praticados na época.

Em face dessa decisão, o Brasil poderá sofrer sanções de organismos internacionais dos quais faz parte; de toda forma, o posicionamento do Suprema, em nosso sistema legal, é soberano.

Mas como ficam os crimes permanentes, ou seja, aqueles, como o sequestro ou cárcere privado (CP, art. 148), cuja consumação se protrai no tempo, perdurando até que cesse a conduta do agente? A decisão do Supremo a eles se estende, anistiando-os?

Alguns membros do Ministério Público, entendendo que a decisão não alcança os delitos permanentes, têm oferecido denúncias criminais contra agentes da repressão por crime de sequestro, pois os sequestrados até hoje não apareceram, não se sabendo seu destino.

Recentemente, a Comissão Nacional da Verdade ouviu um coronel da reserva que afirmou que para evitar a identificação dos mortos, estes tinham seus dedos amputados e as arcadas dentárias arrancadas, sendo o restante dos corpos atirados em rios. Referido militar não se mostrava arrependido, segundo noticiado.

Aparentemente, ele se sentiu encorajado a narrar tais barbáries na certeza de que foi anistiado. Todavia, se as ações criminais por sequestro prosperarem, podendo chegar ao pretório excelso, paradoxalmente melhor teria sido para os denunciados que as mortes dos desaparecidos fossem, de fato, comprovadas com a localização e identificação dos corpos. Assim, os homicídios, segundo o Supremo, estariam anistiados.

Isso porque, como há a hipótese, embora remota, de algum desaparecido ainda estar vivo, a punibilidade do crime de sequestro, em tese, não estaria extinta. Nem teria sido iniciado o prazo de prescrição do crime, o que só se dá no dia em que cessa o sequestro ou cárcere privado (CP,
art. 111, inciso III).

ROBERTO DELMANTO, 70, é advogado criminalista

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