Folha de S. Paulo


Lauro Gonzalez e Caio Piza: Ipea e o perigoso mundo dos dados

Foi grande a polêmica em torno do erro do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). O órgão havia informado que 65% dos brasileiros concordavam, total ou parcialmente, com a afirmação de que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas". Dias depois, veio a informação de que o número correto era de 26%. A correção foi acompanhada da notícia de que um dos autores da pesquisa teria pedido exoneração.

Ao que tudo indica, o erro foi uma fatalidade. O efeito multiplicador da polêmica se liga tanto ao tema, cuja divulgação deveria ter sido tratada com mais cuidado, quanto aos ânimos acirrados em ano eleitoral.

A discussão gerada pela divulgação do levantamento instiga um debate sobre o uso de dados utilizados em pesquisas de interesse social. Tais dados são bastante demandados pela mídia e pelas pessoas em geral, sobretudo quando resultam em mudanças na política econômica, alocação de recursos ou reorientação de políticas públicas.

Até que ponto as regras do jogo das pesquisas, explícitas ou não, geram responsabilidade pelo que está sendo apresentado como resultado dos dados? A reputação dos institutos de pesquisa é suficiente para garantir o cuidado necessário? Há erros propositadamente cometidos?

O próprio presidente do Ipea relembrou o caso Reinhart-Rogoff. Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, economistas e respeitados pesquisadores de Harvard, cometeram erros relativamente simples na manipulação de dados, como esquecer de selecionar uma parte da planilha, deixando de fora 5 países. Quando os erros foram detectados e corrigidos por outros pesquisadores, um resultado tido como chave da pesquisa –o de que, na média, países com razão dívida/PIB acima de 90% tenderiam a incorrer em recessão– se alterou. Só que entre uma coisa e outra, três anos se passaram e a versão com erros foi sido amplamente citada em debates sobre política econômica.

Outra discussão diz respeito ao impacto do microcrédito sobre a redução da pobreza. Em 1998, foi publicado um artigo sugerindo que o Banco Grameen, em Bangladesh, tinha contribuído para a redução da pobreza dos beneficiários. Anos mais tarde, dois pesquisadores, David Morduch e Jonathan Roodman, fracassaram na replicação dos resultados. Ao investigarem a razão do fracasso, notaram que a diferença entre os seus resultados e aqueles no artigo de 1998 residia em algumas poucas observações atípicas que eles haviam descartado em sua tentativa de replicação. Milhões de dólares foram direcionados para instituições de microcrédito ao redor do mundo tendo como referência um estudo com resultados claramente questionáveis.

Obviamente, o fato de esses episódios serem conhecidos e divulgados mostra que, de alguma forma, há um sistema de checagem que funciona razoavelmente. Entretanto, é preciso aprimorá-lo, já que tais erros podem ser bastante danosos.

É preciso ampliar a disponibilização de dados utilizados em estudos. Algumas revistas acadêmicas demandam acesso aos dados contidos nos artigos submetidos, de forma que os próprios pares atuem como instrumentos de monitoramento. Contudo, várias matérias de interesse social amplamente divulgadas não se destinam à publicação científica. Nesses casos, o monitoramento pode ser bastante limitado, quase inexistente, sobretudo quando os bancos de dados utilizados estiverem sujeitos a regras estritas de confidencialidade, envolvendo, em alguns casos, interesses comerciais.

É possível aperfeiçoar esse funcionamento e garantir um monitoramento mais adequado. Entretanto, há limitações intrínsecas à condução de estudos desse tipo. As palavras de ordem devem ser comedimento e espírito crítico. Parafraseando o economista Lawrence Summers, é fundamental manter um nível saudável de relutância diante de resultados de estudos baseados em dados.

LAURO GONZALEZ, 40, professor visitante na Universidade de Columbia, em Nova York, é coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças da Fundação Getulio Vargas
CAIO PIZA, 36, é economista da Unidade de Avaliação de Impacto do Banco Mundial

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