Folha de S. Paulo


Calixto Salomão Filho: Concorrência e intervenção na economia

O significado de defesa da concorrência sempre foi mal compreendido. Juristas, economistas e cientistas sociais que não se dedicaram ao aprofundamento do tema tendem muitas vezes a identificá-la ao livre funcionamento do mercado. Assim, levantam alguns, qualquer política de concorrência que possa interferir no funcionamento desse mesmo mercado seria nociva.

Nada poderia ser mais equivocado, tanto do ponto de vista histórico quanto conceitual. Em primeiro lugar, as economias consideradas desenvolvidas que foram capazes de organizar-se razoavelmente aplicaram, em um momento ou outro, políticas de concorrência extremamente incisivas, capazes de limitar concentrações econômicas ou mesmo desfazê-las e sancionar cartéis, entre outros exemplos.

É o caso dos Estados Unidos. A época mais pulsante de seu crescimento econômico (dos anos 50 aos 70) foi antecedida e acompanhada da aplicação do "Sherman Act" (lei da concorrência americana), o que levou ao desfazimento compulsório de grandes estruturas econômicas e combate duro a cartéis.

Interessante notar que é exatamente quando essa tendência interventiva começa a retroceder, a partir da onda liberalizante dos anos 80, que a organização industrial americana inicia um longo e lento processo de decadência.

O mesmo pode ser observado nas economias europeias. Sua época de ouro coincide com as políticas mais intervencionistas de aplicação do direito da concorrência. Aliás, a própria Comunidade Econômica Europeia (hoje União Europeia) só pôde se consolidar economicamente porque os Estados membros admitiram uma política de defesa da concorrência por parte dos órgãos centrais muito mais interventiva do que as políticas nacionais.

Assim, defesa da concorrência eficaz sempre foi sinônimo de intervenção econômica, por meio da restrição e mesmo do desfazimento de monopólios, sancionamento de cartéis, restrições verticais etc. Afirmar que defesa da concorrência não pode ser interventiva é uma contradição em termos. Sobretudo no Brasil, onde os monopólios antecedem a própria existência da sociedade e do Estado.

Na época colonial, o primeiro movimento dos portugueses é instituir de fato e de direito monopólio de exploração na colônia. Nem sequer se preocuparam com a organização social. Esta só vem depois, e muito depois virá o Estado, ambos dominados pelas estruturas monopolistas que já existiam.

Esse fenômeno continuará a influenciar o processo de subdesenvolvimento brasileiro durante séculos e mais recentemente as próprias vicissitudes da democracia brasileira. Não custa mencionar que o golpe militar apoiou-se fortemente em uma ideologia de respaldo às grandes estruturas econômicas privadas, a quem distribuiu benesses e de quem recebeu apoio.

Nesse sentido, só pode ser digna de elogio uma postura mais interventiva do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). É isso que dele se espera há décadas (para não dizer, no Brasil, séculos) –como venho defendendo há anos.

Esse tipo de intervenção enfrenta com coragem as estruturas de poder econômico, restringindo ou desfazendo monopólios ou desnudando e sancionando com firmeza cartéis. Ela é fundamental para garantir a ética nas relações entre agentes econômicos, destes com agentes públicos e com consumidores.

É também necessária enquanto impede a dominação e desvirtuamento do funcionamento dos mercados e saudável para qualquer economia que pretenda modernizar-se e aprontar-se para os desafios, livrando-se da herança colonial.

Finalmente, trata-se de garantia fundamental para um sistema econômico e social que pretenda permanecer democrático, enterrando para sempre os legados e a filosofia de poder do golpe de 50 anos atrás.

CALIXTO SALOMÃO FILHO é professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Science Po)

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