Folha de S. Paulo


Editorial: A Crimeia é a Rússia

Por mais que as potências ocidentais expressem duras críticas, parece irreversível o processo de anexação da Crimeia à Rússia. A assinatura, ontem, de um tratado de incorporação sacramentou a decisão tomada pelo Parlamento local há 15 dias e referendada pela população da região no domingo.

Na consulta popular, 97% dos habitantes da Crimeia –até então uma república autônoma da Ucrânia– que foram às urnas apoiaram o corte de laços com Kiev e sua absorção pela Federação Russa.

Tamanha taxa de aprovação, comparável apenas às obtidas em regimes ditatoriais e claramente inconsistente com os 60% de moradores de origem russa na região, é uma das indicações de que faltou lisura a esse processo.

Promovido às pressas, o referendo violou a Constituição ucraniana, que confere apenas ao Legislativo nacional o direito de convocar consultas populares e preconiza a necessidade de todo o território do país ser ouvido sobre o assunto.

Lembre-se, ademais, que a Crimeia estava sob ocupação de tropas russas no período de votação. Também a comunidade internacional viu-se impedida de fiscalizar os resultados eleitorais: observadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa foram barrados pelo governo local.

Nesse contexto, compreende-se que Estados Unidos, União Europeia e Ucrânia considerem ilegais e ilegítimos os resultados do referendo. Por consequência, tampouco reconhecerão a anexação da região à Rússia –a tensão no processo de transferência territorial, aliás, já provocou ontem a morte de um soldado ucraniano.

A insatisfação não se restringe ao plano retórico. Descartadas, por ora, intervenções militares, as potências do Ocidente impuseram sanções econômicas a Moscou. As medidas até aqui anunciadas, como o congelamento de ativos no exterior, são passos sem dúvida tímidos para que o Kremlin reconsidere suas ações nesse caso.

Ainda que resultem infrutíferas, tais medidas precisam ser adotadas. Não é mais a Crimeia o que está em jogo. Trata-se de sinalizar ao presidente da Rússia, Vladimir Putin, que novos episódios desse gênero não passarão sem custos consideráveis para Moscou.

Putin, de todo modo, afirma não estar disposto a prosseguir no que seria uma condenável aventura expansionista. Talvez sua ação se esgote mesmo na Crimeia. Essa região, afinal, já pertenceu à Rússia e está estrategicamente situada no mar Negro.

Para corrigir o que julga um equívoco antigo, no entanto, o Kremlin pode ter criado novo problema: a perda de influência sobre o restante da Ucrânia, que agora pende para a esfera europeia.


Endereço da página: