Folha de S. Paulo


J. P. Cuenca: Quem ganha e o que sai perdendo

O uso político do falecimento do cinegrafista Santiago Andrade é desrespeitoso com o morto e sua família. A tragédia está sendo usada pelas três esferas de poder estatal como barganha com a sociedade. Está sendo usada como moeda por todos os lados do espectro eleitoral, já em campanha para outubro. E por setores da mídia para defender seus interesses. Esse oportunismo ficará marcado na história.

Infelizmente, o cinegrafista não foi o primeiro brasileiro a morrer em manifestações desde junho do ano passado –o Centro de Mídia Independente organizou uma lista consistente de mortos e feridos. Isso não significa que a morte do jornalista seja menos importante ou revoltante que as outras. Todas são. Todas devem ser choradas. Ninguém deve sair machucado de um protesto: manifestante, transeunte, jornalista ou policial. A violência não é o caminho.

Ajudaria a esvaziar o clima de histeria se as autoridades e a imprensa parassem de tratar o caso como execução. O que houve foi um ato criminoso e irresponsável, mas ninguém tirou um revólver do coldre e atirou no cinegrafista à queima-roupa. A morte do Santiago não foi um atentado direcionado a imprensa. O Santiago poderia ser qualquer um que estivesse passando por ali –o que passa longe de ser um atenuante. As responsabilidades existem e devem ser apuradas com rigor, mas sem sensacionalismo e espetacularização.

É impossível analisar a cena dos protestos de rua sem encarar o fato de que, pelo menos no Rio de Janeiro, quem costuma inaugurar a violência em larga escala é a polícia, não os manifestantes. Numa inversão causal, a imprensa costuma negar que a PM, por iniciativa ou incompetência, seja a principal responsável pela deflagração dos conflitos. Como foi naquela tarde dentro da Central do Brasil. A mesma polícia, aliás, que é responsável pela maioria dos ferimentos de jornalistas em manifestações. A quem interessa essa ordem trocada dos fatores?

Certamente não aos manifestantes que, de forma estúpida e demonstrando total analfabetismo político, hostilizaram repórteres de grandes veículos até conseguir afastar a maioria deles da cena complexa dos protestos. É um tiro no próprio pé. O manifestante que expulsa a imprensa perde o direito de reclamar da capa do jornal no dia seguinte. Ele se torna corresponsável pelos erros e falhas de apuração que ela estampar.

O lugar do Brasil em rankings de países com mais jornalistas assassinados tem subido ao mesmo tempo em que caímos posições em liberdade de imprensa. No entanto, além de ameaças externas que não devem ser subestimadas, qualquer pensata sobre a profissão precisa incluir a dicotomia muitas vezes existente entre o interesse político e econômico dos grandes grupos de comunicação e o exercício livre do jornalismo nas ruas, por quem está com a caneta ou a câmera na mão. Esse é um dos sofás que precisa ser colocado no meio da sala. O maior inimigo da democracia às vezes é uma campanha de desinformação decidida no aquário de um estúdio de TV. Inimigo da democracia e também da própria imprensa.

Quem ganha com esse estado de coisas? Quem ganha com a criminalização das manifestações? Quem ganha com a cortina de fumaça e o clima de caça às bruxas? Quem ganha com editoriais que fomentam o ódio e alimentam cisões? Quem ganha com a aprovação de uma lei antiterrorismo vaga e cheia de brechas às vésperas da Copa do Mundo? Quem ganha e, principalmente, o que sai perdendo?

Essas questões são urgentes. Você precisa respondê-las sozinho –e não que outros respondam por você.

JOÃO PAULO CUENCA, 35, é escritor

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