Folha de S. Paulo


Gabriel Kogan: Entre a seca e as inundações

A cidade de São Paulo vive na iminência de dois desastres hídricos antagônicos: a seca e as inundações. As enchentes que submergem casas e o racionamento de água que ameaça secar as torneiras são dois lados de um mesmo problema.

A ocupação desordenada do território é a origem dessa situação. Desde a aceleração da urbanização no século 19, a cidade trata seus rios como inimigos. Afinal, como um lugar com 3.500 km de cursos d'água e milhares de nascentes pode enfrentar risco de racionamento?

Não falta água, mas os recursos estão poluídos porque o esgoto não é coletado e tratado, as habitações sobrepuseram córregos e a poluição difusa do ar gerada pelos automóveis é carregada para os rios.

Hoje e ontem, o saneamento foi negligenciado. Os investimentos em tratamento e coleta de esgoto são baixos, pois a lógica imediatista é que saneamento urbano dá prejuízo. Então, à população não resta escolha senão viver com os pés em rios infectados. A Sabesp diz tratar 70% do esgoto gerado na cidade –índice já bastante baixo–, mas, considerando a capacidade das estações existentes, as perdas do sistema e o abastecimento, esse número pode não passar de 35%.

Esperando o racionamento, vemos os mesmos rios –tamponados, escondidos– transbordarem, como aconteceu no Pirajuçara de Taboão da Serra em janeiro.

Entre o desabastecimento e as enchentes, as populações pobres precisam, historicamente, ocupar os terrenos mais baratos, as fétidas margens dos rios. As inundações foram constantes e destruidoras para bairros operários: 1902, 1906, 1907, 1919, 1923, 1929. Assim vamos, quase anualmente, até hoje.

A mesma industrialização que poluiu leitos d'água incentivou a ocupação das várzeas e o uso dos automóveis. Os carros foram o golpe de misericórdia para os rios em São Paulo, entrincheirados por avenidas marginais. Toda área vazia das várzeas para acumulação de água foi ocupada rapidamente.

Em 1926, o engenheiro sanitarista Saturnino de Brito projetou um complexo sistema para o Tietê, preocupado com inundações e secas. Executou-se a parte que interessava imediatamente ao poder econômico: a construção das marginais e a canalização do rio Tietê para ocupação dos terrenos das margens. O resto foi rasgado, e assim o rio ficou mais estreito e grandes lagos para acúmulo de água foram considerados antieconômicos, virando loteamentos.

Estatísticas mostram que chove quantidade similar em São Paulo desde o começo das medições sistemáticas, nos anos 1890. Tivemos anos mais secos e anos mais chuvosos. Isso é normal. O sistema de abastecimento e drenagem deve incorporar essas oscilações.

A culpa pela situação é dos homens, da ganância histórica de dominação do nosso território, da dominação do homem sobre ele mesmo. Temos condições de promover desapropriações, de fazer milhares de habitações sociais em lugares equipados e seguros, de investir no tratamento integral de esgoto, de destruir as avenidas marginais, de construir metrô, de implantar um sistema de navegação fluvial metropolitano de carga, de destamponar os rios? São escolhas, como foram as que nos empurraram para a iminência simultânea de seca e inundações.

GABRIEL KOGAN, 29, é arquiteto formado pela USP e mestre em gerenciamento hídrico no IHE (Institute for Water Education), instituto de pesquisa sobre água da Unesco na Holanda

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