Folha de S. Paulo


Editorial: Nelson Mandela

A galeria dos heróis do século 20 é extensa, mas muitos deles, embora ídolos numa parte, são vilões em outras. É bem menos numerosa aquela constituída por personagens que, ainda em vida, foram alçados a um patamar acima do bem e do mal. Nela estão Mohandas Gandhi, Martin Luther King e, sem dúvida, Nelson Mandela.

A morte do líder sul-africano aos 95 anos traz à memória momentos icônicos das últimas décadas: o discurso de defesa no julgamento que o condenou à prisão perpétua, quando se dispôs a morrer pela democracia racial; a saída da prisão, após 27 anos, com passos lentos e punho erguido; a eleição para presidente em 1994.

O caráter excepcional de Mandela se manifestou de diversas formas. Herói da libertação africana, não quis, ao contrário do que fizeram outros "pais da pátria" naquele continente, moldar o Estado à sua imagem e semelhança. Abriu mão do poder após um único mandato, de cinco anos. É enorme o contraste com dinossauros como Robert Mugabe, do vizinho Zimbábue, no poder desde 1980.

O discurso conciliador e a força do exemplo ajudaram a conter as forças centrífugas da África do Sul na primeira metade dos anos 90. Visto de hoje, o processo de transição pós-apartheid parece ter sido possível apenas porque na liderança estava Nelson Mandela.

Sua moderação e fortaleza moral foram decisivas para desencorajar movimentos separatistas brancos que se alimentavam de um razoável temor de retribuição negra após o fim do apartheid. No poder da oratória e na habilidade política o líder acomodou nacionalismos tribais, sobretudo da influente etnia zulu, que noutros países africanos levaram a tragédias.

Como figura mitológica, Mandela teve seus pecados relevados. Desinteressado pelos meandros da administração, fez um governo apenas mediano. O país sob seu comando cresceu em média 2,7% ao ano, insuficiente para reduzir a pobreza acumulada. A desigualdade de renda aumentou. Os índices de violência urbana explodiram.

Ignorou a nascente epidemia de Aids, não foi imune à retórica terceiro-mundista e mostrou injustificável solidariedade a déspotas como Muammar Gaddafi e Fidel Castro.

Seu legado maior é difícil de ser medido. Sem esmagar a minoria branca, estabeleceu a igualdade com os negros, 80% da população. Sublimou anos de cárcere e sofrimento pessoal em nome de um bem coletivo. Após sair do governo, pairou sobre as pequenezas da política sul-africana: as brigas fratricidas no governo, os escândalos de corrupção, as ofensas marcadas pelo componente racial.

Nos últimos dez anos, a democracia sul-africana retrocedeu a uma pálida lembrança do idealismo pós-apartheid. Mas a comoção com a morte de Nelson Mandela é prova de que não há retorno cabível a um dos mais odiosos sistemas políticos já inventados.


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