Folha de S. Paulo


Editorial: Drogas na vizinhança

A eficácia de uma política nacional antidrogas depende de dois aspectos transfronteiriços: o narcotráfico internacional e as experiências de descriminalização. São duas frentes nas quais o Brasil tem enviado sinais equivocados.

Em entrevista a esta Folha, o presidente do Uruguai, José Mujica, disse que o Brasil está entre os vizinhos que pressionam seu governo contra a regulamentação da produção e venda de maconha pelo Estado, a partir do ano que vem. A razão seria o temor de que a droga ultrapasse as fronteiras uruguaias.

Embora a preocupação seja compreensível, há mais motivos para apoiar que para combater a iniciativa --de resto restrita aos cidadãos daquele país. Trata-se de pôr em prática uma alternativa à mundialmente esgotada política antidrogas centrada na repressão.

É difícil discordar de Mujica quando ele diz que, comparativamente, o narcotráfico tem um efeito muito pior para a sociedade do que o eventual aumento do número de usuários de maconha.

Se é para exercer pressão, o Brasil deveria visar a Bolívia, principal origem da cocaína que entra no país --54,3% do total. Trata-se de droga mais nociva à saúde e muito mais lucrativa para traficantes.

Refém político dos produtores de coca, o presidente Evo Morales incentiva o cultivo da planta em áreas superiores às necessárias ao uso tradicional. O governo endossa proposta dos "cocaleros" para ampliar o limite legal, dos atuais 12 mil hectares para 20 mil.

Estudo da União Europeia divulgado em novembro, contudo, sugere que bastariam 14,7 mil hectares para atender à demanda lícita (sobretudo a mastigação). Na prática, a Bolívia já planta mais do que o necessário: a ONU calcula que o país tinha, no ano passado, 25,3 mil hectares de cultivo de coca.

É de notar que o debate entre a Bolívia e a UE passou ao largo do Brasil, cujo governo praticamente ignora o problema, relegando-o à esfera policial e evitando, de forma equivocada, confrontar Morales.

É urgente que o Brasil, único país do mundo que compartilha fronteiras com os três produtores de coca (Bolívia, Colômbia e Peru), redefina suas prioridades.

Se José Mujica procura uma experiência sintonizada com os debates mais avançados, Evo Morales apenas tenta proteger uma categoria que há tempos se beneficia da cadeia de produção da cocaína.


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