Folha de S. Paulo


Marcos de Barros Lisboa e Zeina Abdel Latif : A ideologia e os privilégios

Em um artigo recente, procuramos sistematizar diversos mecanismos de concessões de privilégios, benefícios e subsídios cruzados na economia brasileira.

Economistas utilizam o termo "busca por renda" para a interação entre grupos de pressão e o setor público visando a obtenção ou a manutenção desses benefícios.

Em sua coluna na última quarta-feira nesta Folha, Delfim Netto atribui esse processo unicamente ao "comezinho interesse material".

A nosso ver, no entanto, a ideologia, refletida nas escolhas políticas e na abordagem econômica, é igualmente relevante para a disseminação de privilégios.

As principais correntes de economistas no Brasil divergem sobre o papel do setor público. Regulação e ação pública são partes essenciais de qualquer economia de mercado.

O nacional desenvolvimentismo destaca a necessidade de intervenção pública discricionária sobre as atividades privadas e a concessão de proteções e benefícios para grupos específicos, de forma a estimular a produção doméstica e o crescimento econômico.

Economistas mais liberais, por outro lado, enfatizam a importância de políticas públicas e agências independentes que estabeleçam regras para as decisões privadas, que devem ser transparentes e equânimes, minimizando a escolha dos privilegiados pela burocracia estatal.

Benefícios discricionários devem ser concedidos com parcimônia, estar transparentes no orçamento público e, preferencialmente, ser avaliados por agências independentes. Além disso, eventuais proteções setoriais devem ter como objetivo ganhos de eficiência e, por isso mesmo, ser temporárias.

Tivemos poucos períodos mais liberais na nossa história, como entre 1990 e meados da década passada. Desde então, temos assistido ao retorno do projeto nacional desenvolvimentista.

O volume de crédito concedido pelo BNDES dobrou nos últimos cinco anos, atingindo 11,4% do PIB em agosto e parece apenas ter permitido aos beneficiados financiamentos a taxas de juros subsidiadas, às custas de uma dívida a ser paga por toda a sociedade.

A tarifa de proteção efetiva contra a competição externa para a indústria automobilística chegou a cerca de 200% recentemente, quatro vezes mais do que em 2000.

A relevância da ideologia se manifesta nos casos em que a busca por renda foi o resultado, e não a causa, da política pública, como na lei de informática, na indústria naval e na Zona Franca de Manaus. A política de desenvolvimento teve como consequência a formação de grupos de interesse que, uma vez estabelecidos, passaram a resistir à supressão dos benefícios concedidos.

Os frequentes fracassos das políticas de concessão de privilégios em produzir ganhos de produtividade criam um dilema: retirar os benefícios significa fechar negócios. Por outro lado, a proteção a empresas ineficientes implica maiores custos para seus clientes: outras empresas, que perdem produtividade, ou famílias, que têm sua renda reduzida. A política de privilégios resulta na transferência de recursos entre setores; a meritocracia e as escolhas democráticas substituídas pela burocracia na escolha dos vencedores.

Nosso artigo concluiu com duas propostas. Em primeiro lugar, toda a concessão de privilégios e benefícios deve fazer parte do orçamento público e deliberada pelo Legislativo, incluindo o sistema S, a aplicação dos recursos do FGTS e os subsídios cruzados decorrentes do crédito direcionado. Em segundo, deveria existir uma agência independente para avaliar a eficácia das políticas públicas, garantindo transparência à deliberação democrática.

A crença na capacidade de o governo induzir o desenvolvimento com intervenção discricionária tem sido recorrente na nossa história, porém seus resultados, frustrantes. A extensão e as formas de intervenção, no entanto, têm variado, refletindo as circunstâncias, mas também a ideologia e a política. Critérios e procedimentos transparentes são essenciais para decisões informadas e democráticas sobre a concessão de benefícios e privilégios. Assim como as escolhas políticas.

MARCOS DE BARROS LISBOA, 48, doutor em economia pela Universidade da Pensilvânia, é vice-presidente do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa
ZEINA ABDEL LATIF, 45, doutora em economia pela USP, é sócia da consultoria Gilbratar

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