Folha de S. Paulo


Glenda Mezarobba: Futuro do pretérito

Não poderia ser mais oportuno o lançamento da versão digital das mais de 900 mil páginas que compõem o conjunto de 710 processos tramitados no Superior Tribunal Militar durante a ditadura.

Pouco sensato será desperdiçar o convite à reflexão que esse encontro do passado com o presente faz à sociedade brasileira.

Resultado da coragem de um pequeno grupo de defensores dos direitos humanos que atuou sob constante risco e produzido à revelia do Estado, o projeto Brasil: Nunca Mais (BNM) não teria existido sem a disposição do reverendo Jaime Wright e o empenho de dom Paulo Evaristo Arns --desde o início, foi o cardeal quem arcou com a responsabilidade de eventuais desdobramentos não desejados da iniciativa, sem sequer pedir permissão ao Vaticano para desenvolvê-la.

Graças ao suporte financeiro do World Council of Churches, o irmão de Paulo Stuart Wright, deputado cassado logo após o golpe e que desapareceu em 1973, e o arcebispo que acolhia os familiares de presos e perseguidos políticos conseguiram tornar público, poucos meses depois do fim da ditadura, o mais alentado estudo sobre a tortura no Brasil.

Editada sob a forma de livro e lançada sem alarde, a obra que sintetiza o projeto --e rapidamente entraria para a lista das mais vendidas-- trata do sistema repressivo, da subversão do direito e das diferentes formas de suplício a que os presos políticos eram submetidos.

Suas tabulações indicam que as denúncias de tortura ocorriam em cerca de 25% dos processos, número impressionante se levarmos em conta os riscos que ofereciam a quem estava sob custódia policial.

Retrato do horror vivido por determinado grupo de indivíduos, durante um regime de exceção e em um contexto histórico específico, a versão completa que a era digital agora dissemina segue contemporânea. O tempo decorrido desde então não foi suficiente para alterar a realidade.

A questão permanece atual porque a sociedade brasileira ainda convive com a violência e a tortura. Se é verdade que o Estado rapidamente ouviu o apelo do cardeal Arns, registrado no prefácio do livro, para que o país assinasse a Convenção contra a Tortura, também é fato que os desaparecimentos forçados continuam ocorrendo.

Desde maio de 1973 ignoramos o paradeiro da estudante Maria Augusta Thomaz, por exemplo. Há quase um mês desconhecemos o destino do pedreiro Amarildo, desaparecido após ter sido abordado por policiais militares, no Rio.

E embora nesta semana a presidenta Dilma tenha sancionado a lei nº 12.847, que cria o sistema nacional de prevenção e combate à tortura, parece evidente não ser possível esquecer os crimes cometidos por agentes do Estado. Tenham eles ocorrido há décadas, meses ou dias.

Da mesma forma, também não é mais possível ignorar o "direito inalienável" que as sociedades têm de conhecer a verdade sobre crimes do passado e o dever de recordar que os Estados precisam cumprir.

Conjunto de princípios publicado pela ONU em 2005 indica que a história de determinado período de opressão constitui patrimônio público, cabendo ao Estado preservar do esquecimento a memória coletiva.

Se não há dúvidas de que o projeto BNM conseguiu criar um registro duradouro da tirania do Estado, também parece incontestável que ainda não conseguimos lidar com o legado deixado por ele.

Construímos nossa democracia, regime que pode ser definido também pelo apreço à transparência, ao mesmo tempo em que abarrotamos os presídios. Vivemos em um país com a quarta maior população carcerária do mundo. São 548 mil pessoas atrás das grades.

A história não ensina? Ou somos péssimos alunos? Como ainda é possível conviver com a tortura e os desaparecimentos forçados?

Escolher o que devemos lembrar e de que forma vamos fazê-lo será decisivo para o futuro que construímos no tempo presente.

GLENDA MEZAROBBA, cientista política, é consultora da Comissão Nacional da Verdade


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