Folha de S. Paulo


Paola Carosella: Um ato de amor

O Brasil está caríssimo. Uma ida rápida ao supermercado na semana retrasada me custou R$ 90 e rendeu: três saquinhos de manga desidratada, uma barra de chocolate meio amargo, um litro de leite, quatro pacotinhos de gelatina e 200 gramas de queijo parmesão nacional.

Saí do super, olhei a conta, peguei a levíssima sacolinha e me dei conta de que o almoço executivo do meu restaurante, e de outros bons restaurantes de São Paulo, custa menos da metade disso. Mas nós somos os vilões da vez.

Nunca vi tanto espaço em jornais e revistas dedicado aos preços dos restaurantes. De um dia para o outro, a única coisa cara desta cidade passou a ser os restaurantes. O resto vai bem, obrigado.

A lista de despesas que temos num restaurante que paga o que tem de pagar e faz o que tem de fazer "comme il faut" é interminável. Matéria-prima, reposição de louça, lavanderia, flores, manutenção predial, nutricionista, coleta de lixo, medicina do trabalho, uniformes, treinamento, sindicato ,energia elétrica, água, gás, correios, internet, telefone, contador, advogado, despesas bancárias, juros, aluguel, impostos, segurança privada, taxas de prefeitura, folha de pagamento, encargos sociais, seguro médico, odontológico e de vida e vale transporte: aquele transporte que o funcionário que trabalha de noite não tem para voltar para casa, pois, São Paulo, a "capital mundial de gastronomia", não tem transporte público 24 horas.

Falei em segurança privada? Pois é, também precisamos fornecer segurança para nós mesmos, nossos funcionários e nossos clientes.
E assim aumenta o valor do prato do seu restaurante predileto.

Particularmente, penso que este momento pelo qual estamos passando é genial. Sempre achei um tédio profundo toda a pompa em torno da "alta gastronomia". Me surpreendi quando cheguei a São Paulo, em 2001, com a quantidade de garçons por mesa e o grau de exigência do cliente paulistano. Cozinhar, comer e receber são atos de amor, e não de sofisticação ou de perfeição rígida e cronometrada.

Fico muito brava quando escuto que comer em Paris é melhor e mais barato do que em São Paulo. Claro! Viver em Paris é muito melhor e mais barato do que em São Paulo.
Muitos dos melhores restaurantes de Paris são pequenos, têm 40 lugares, o chefe está na cozinha e o sócio, mulher ou marido, no salão. Os dois atendem 40 pessoas por noite. O cardápio tem uma ou duas opções, e é isso. De nenhuma outra forma seria possível cobrar preços justos e atender com eficiência.

Eu tenho um restaurante que um tempo atrás começou a ficar caro. Eu não queria ter um restaurante caro. Propus aos meus sócios uma mudança de estilo. Precisaria de um pequeno investimento. Eles não toparam. Eu insisti. Consegui terminar a sociedade, peguei dinheiro emprestado e comecei a fazer as mudanças que desejava.

Mudei o cardápio e diminuí o número de mesas, a carta de vinhos e a equipe. Tirei o jogo americano de linho, as velas, troquei flores frescas por plantas em vasos e foquei o que realmente acho importante: o conteúdo no prato, a qualidade da matéria-prima, a estrutura da cozinha e a gentileza dos atendentes.

Tirei a taxa de rolha, não tenho mais sommelier e tenho uma carta de vinhos de apenas 40 rótulos. O restaurante ficou menos caro e mais amável.

O momento demanda mudanças, tanto para nós, donos de restaurantes, como para nós, clientes. Talvez seja o fim das mordomias, talvez seja o momento de o Brasil diminuir as diferenças de classes. Talvez seja o momento para que tudo fique mais acessível e menos abusivo. Não somente os restaurantes.

PAOLA CAROSELLA, 40, argentina, é proprietária do Arturito. Trabalha há 22 anos em restaurantes, inclusive em Paris, San Francisco e Nova York

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