Folha de S. Paulo


Anita Waingort Novinsky: A mensagem do padre Antonio Vieira

Com o estabelecimento do Santo Ofício da Inquisição em 1536, desenvolveu-se em Portugal uma tradição de clandestinidade que acabou se incorporando profundamente à vida nacional.

A insegurança que a Inquisição produziu em todos os portugueses por meio da fiscalização, das denúncias anônimas e da censura escrita e falada condicionou atitudes e comportamentos dúbios. Sem saber de que ângulo provinha o perigo, portugueses criaram um verdadeiro talento para dissimular.

Uma "outra" leitura de alguns textos do padre Antonio Vieira (1608-1697) nos revela um Vieira "escondido" em suas dissimulações. A íntima convivência com judeus na Holanda e na França e com cristãos novos em Portugal e no Brasil marcou de maneira profunda suas ideias sobre esse povo e seu destino.

Sua larga e universal concepção do mundo, suas ideias sobre justiça, sua crítica à corrupção da igreja e sua valorização extrema do povo judeu chocavam-se com o fanático mundo lusitano. Numa sociedade como a portuguesa, na qual o critério para a valorização do homem é sua origem e seu sangue, Vieira se elevava acima de seu tempo. "A verdadeira fidalguia é a ação: o que fazeis, isso sois, nada mais", escreveu ele.

Analisando sua visão sobre os judeus, que emerge nas entrelinhas de suas obras, sentimos uma preocupação constante com a reconciliação entre o judaísmo antigo e a doutrina de Cristo, entre o povo judeu e os cristãos.

Para os ouvidos conservadores e antissemitas portugueses do Setecentos, certamente soavam chocantes suas reflexões, principalmente quando ele constrói um paralelo entre a situação política de Portugal (então sob domínio da Espanha) e a dos judeus: "Todos os homens desejam soberania e não querem estar sujeitos a estranhos. Assim é o direito dos judeus esperarem justamente serem reconduzidos à sua pátria". Para Vieira, o mito do retorno dos judeus à Palestina "não é apenas uma promessa divina, mas é um direito legítimo, porque vivem sob o jugo estranho".

Nos seus últimos anos, Vieira viveu na Bahia, rodeado de cristãos-novos e judaizantes, compartilhando com eles de uma seita milenarista. Em sua obra-prima "Clavis Prophetarum", procura ler então nas Sagradas Escrituras o que está oculto e reafirma seus sonhos de reconciliação entre judeus e cristãos.

Quando os ritos judaicos dos cristãos novos eram punidos até com a morte pela Inquisição, Vieira afirma que deviam ser permitidos, pois seu uso não fora proibido por Deus, mas meramente pela igreja. E vai ainda mais longe, afirmando que a circuncisão será permitida aos cristãos, não como culto religioso, mas como sinal da Lei Antiga, derivada de Abrão.

Mas o que manipula de uma forma magistral é a sua concepção do Messias, ponto crucial das divergências entre cristãos novos e velhos --ou seja, o Messias já vindo e o Messias ainda esperado. Entra, então, no imaginário judaico, afirmando que a paz no mundo é uma das principais consequências da vinda do Messias, "e como a paz não existe, o Messias ainda não veio".

Numa Europa impregnada de previsões apocalípticas, profecias, ocultismo, heterodoxias e milenarismos, Vieira se fundamenta no Velho Testamento, joga com as palavras e com o poder e coloca-se como um ecumênico, cuja mais forte mensagem é a reconciliação entre judeus e cristãos.

Navegando na interpretação das Escrituras, lança a mensagem mais esclarecida, humana e moderna que se ouviu no Setecentos português: a liberdade dos cristãos novos de serem judeus.

Felizmente, quatro séculos depois, a mensagem do jesuíta Antonio Vieira encontra eco nas palavras calorosas de outro jesuíta, o novo papa Francisco, sobre os judeus.

ANITA WAINGORT NOVINSKY, historiadora, é professora livre-docente da Universidade de São Paulo (USP)

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