Folha de S. Paulo


Roberto Luiz d'Avila - Não se faz boa saúde com falácias

A "importação" de médicos estrangeiros e de brasileiros portadores de diplomas de medicina obtidos no exterior esconde os reais motivos da falta de assistência nos municípios do interior e nas periferias das grandes cidades. Aliás, ouso dizer que interessa a setores do governo colocar toda sua energia nesse embate, como se estivesse em jogo a solução final dos problemas do Sistema Único de Saúde (SUS).

Querem fazer crer que tudo seria resolvido num passe de mágica. Mas nem o grande Houdini --o maior ilusionista de todos os tempos-- daria conta do que quer o governo. A lógica é simples: instalam-se médicos (estrangeiros ou nativos) em áreas de difícil provimento e --abracadabra!-- a população passa a ter a assistência dos seus sonhos.

No entanto, é fácil prever o fracasso desse estratagema. A assistência de qualidade não se faz apenas com médicos com um estetoscópio no pescoço. É preciso investimento em infraestrutura, insumos, apoio de equipes multidisciplinares e profissionais estimulados por políticas que reconheçam seu valor e sua essencialidade dentro de um modelo de atenção, que míngua devido à incompetência gerencial.

Os defensores da importação dos médicos adoram comparar a razão brasileira de médicos por habitante (atualmente na casa de 2/1.000) com os números de outros países. Dizem que precisamos atingir os indicadores da Suécia (3,73), França (3,28), Alemanha (3,64), Espanha (3,71), Reino Unido (2,64) e Argentina (3,16), segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS).

É estratégico esquecerem-se de mencionar que o governo dessas nações (com sistemas de saúde semelhantes ao SUS) investem mais do que o Brasil. Na Inglaterra, a participação do Estado no gasto nacional em saúde chega a 84%. Na Suécia, França, Alemanha e Espanha, oscila de 74% a 81%. Na Argentina, é de 66%. No Brasil, é de 44%. Os números falam por si.

Outro ponto que o governo distorce em sua argumentação diz respeito à forma de acesso de médicos estrangeiros ao mercado de trabalho. É verdade que eles representam segmento importante dentre os profissionais do Canadá e da Inglaterra, por exemplo. No entanto, ao contrário do que o Ministério da Saúde diz, ninguém desembarca e sai atendendo pacientes logo de cara.

Nesses países, e na maioria das nações sérias, os médicos com diplomas obtidos no exterior só podem clinicar após passarem por criteriosos processos para avaliar suas competências. Enquanto não é aprovado, ninguém vai para hospitais treinar sua falta de conhecimentos na pele e nos ossos dos nativos de plantão. No Brasil, espera-se a mesma cautela.

Diferentemente do que tem sido dito, a grita das entidades médicas não tem nada de corporativista ou xenófoba. Serão bem-vindos todos os médicos e brasileiros formados em outros países, desde que provem em exames do nível do atual Revalida (criado pelo próprio governo, em 2010) que dão conta do recado.

No Brasil, não há meio médico. Quem faz medicina tem que resolver os desafios em todos os níveis de complexidade: de uma diarreia a um procedimento de emergência. Trazer médicos que vão apenas fazer consultas em postos de saúde é, no mínimo, um paliativo. E o que acontece se num desses rincões o Seu João tiver uma crise aguda de apendicite? O prefeito e o médico do posto o colocarão numa ambulância rumo ao município vizinho?

Esse embuste tem nome: pseudoassistência. E quem concorda em fazer parte dessa armação é um pseudomédico. Não enxergo uma nesga de arrogância nessa constatação. Aliás, me parecem portar o gene desse sentimento aqueles que tentam ludibriar os incautos transformando falácias em saúde de qualidade.

ROBERTO LUIZ D'AVILA, 60, cardiologista, é presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM)

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