Folha de S. Paulo


Metade estrangeira, cidade do sul dos EUA vira reduto de refugiados

Fugees Family/Divulgação
A técnica de futebol Luma Mufleh orienta seus jogadores do Fugees Family em Clarkston
A técnica de futebol Luma Mufleh orienta seus jogadores do Fugees Family em Clarkston

Parece a típica cidade americana, cercada de autoestradas, igrejas e lojas de waffles. Mas as placas em árabe e somali entregam: não se trata de uma localidade qualquer.

Encravada no meio do Estado da Geórgia, de maioria republicana e conservadora, Clarkston virou lar para centenas de refugiados, que chegam em busca de recomeço.

Dos 12 mil habitantes, quase metade é estrangeira. Pelas ruas, se veem homens de turbante, mulheres de hijab e gente de cerca de 40 países, a maioria deles envolta em guerras, perseguição política, religiosa ou de gênero.

Clarkston é assim desde a década de 1980, quando começou a receber os primeiros refugiados da Guerra do Vietnã (1955-1975) —mas, nos últimos meses, sentiu uma onda de hostilidade.

"Muitos de nós se fecharam", diz à Folha a jordaniana Luma Mufleh, 42, professora e técnica de um time de futebol para crianças refugiadas, o Fugees Family.

Desde a eleição de Donald Trump, o grupo, que ganhou campeonatos estaduais, jogou contra rivais que ostentavam a bandeira confederada e pediam que os jogadores "voltassem a seu país".

À reação da técnica, os pais dos atletas do time oposto foram complacentes: "[Dizem que] É só 'trash talk' (falar besteira). A única coisa que faço é sorrir e me afastar", diz a aluna Maison Babikir, 15.

Reeleito no mês passado, o prefeito de Clarkston, Ted Terry, um democrata de 34 anos e estilo hipster, celebra a diversidade do município.

Mas ele foi atacado na campanha, sob a acusação de fomentar o islã. Muita gente deixou a cidade. "A essa altura, a maior parte dos racistas que vivia aqui morreu ou se mudou", comenta.

Clarkston tem um ambiente acolhedor, com celebração do ramadã e letreiros em língua estrangeira. Mesmo assim, há relatos de resistência.

"Algumas pessoas te olham como se você fosse nada", diz Amina Osman, 89, natural do Quênia.

Conhecida como "mãe Amina", ela vive há oito anos em Clarkston, fugida da guerra que matou toda a sua família na Somália. Seu telefone não para de tocar: de tanto rodar pela cidade ajudando refugiados, virou uma representante extraoficial.

Com Trump (ou seria contra?), ela diz ter estímulo para se posicionar politicamente. "Agora é a hora de lutar."

Estelita Hass Carazzai/Folhapress
Amina Osman, 89, virou líder dos refugiados de Clarkston
Amina Osman, 89, virou líder dos refugiados de Clarkston

INFLEXÃO

Os EUA recebem tradicionalmente cerca de 60 mil refugiados por ano, a maioria da Ásia e da África. O número chegou ao pico de 85 mil em 2016, diante da crise humanitária provocada pela guerra com a facção Estado Islâmico na Síria e no Iraque.

Mas 2017 trouxe "muita confusão" sobre quem são os refugiados e por que eles migram para os EUA, diz o americano Brian Bollinger, diretor da ONG Friends of Refugees.

Trump promoveu uma inflexão no programa de acolhida a estrangeiros, reduzido a menos da metade e mirando em 2018 a meta mais baixa de sua história: serão recebidas no máximo 45 mil pessoas.

Os EUA também anunciaram a saída do pacto de migração da ONU por considerá-lo "incompatível com a soberania americana".

Parte dos países que mais enviam refugiados ainda está sujeita ao decreto anti-imigração que proibiu a entrada de viajantes de seis nações de maioria islâmica, sob a alegação de segurança nacional.

Muitos dos moradores de Clarkston, em especial os sírios, ainda têm familiares no exterior —mas que não podem imigrar para os EUA. Na semana passada, um juiz federal suspendeu o veto para potenciais refugiados que possuam parentes em cidades americanas.

"É estressante porque eles estão vivendo em um limbo", diz Paedia Mixon, 43, diretora da ONG New American Pathways, que reassenta refugiados na Geórgia. "Há muita instabilidade."

Para Bollinger, não cabe falar de risco à segurança nacional para restringir o programa para estrangeiros."Nunca neste país um refugiado tirou a vida de um americano em um ataque terrorista."

ESPERANÇA

Apesar da incerteza, a comunidade em Clarkston mantém a verve. "Os refugiados devem se manifestar. As pessoas não temem aquilo que conhecem", diz o sírio Heval Kelli, 34, nos EUA desde 2001.

Muitos moradores acolhem refugiados e organizam visitas às famílias. As pessoas frequentam restaurantes típicos e, nas igrejas, há sinais de boas-vindas.

"Fala-se dos Estados sulistas, mas se esquece de que aqui também há uma forte base religiosa", diz a professora Mary Helen O'Connor, da Universidade do Estado da Geórgia. Para ela, isso explica a receptividade aos migrantes.

O prefeito Terry considera que, se a questão é segurança, os refugiados são o melhor exemplo de imigração. "Eles são resilientes, trabalhadores, dão de volta ao país."

Trump fez 51% dos votos na Geórgia. Na comarca de Clarkston, patinou nos 16%.


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