Folha de S. Paulo


América Central não é viável se países ficarem isolados, diz Sergio Ramírez

Oswaldo Rivas - 14.dez.2017/Reuters
O escritor nicaraguense Sergio Ramírez fala durante apresentação de seu último livro em Manágua
O escritor nicaraguense Sergio Ramírez fala durante apresentação de seu último livro em Manágua

Ganhador em 2017 do Prêmio Cervantes, o principal da língua espanhola, o nicaraguense Sergio Ramírez, 75, lança um romance em que volta a refletir sobre seu passado durante a Revolução Sandinista (1979-90), que derrubou a ditadura de Anastasio Somoza, em 1979.

Integrante do chamado Grupo dos Doze, formado por intelectuais, empresários e sacerdotes que apoiaram a Frente Sandinista de Liberação Nacional, ele também fez parte da Junta de Governo de Reconstrução Nacional, que comandou o país após a queda de Somoza.

Dela faziam parte o atual presidente Daniel Ortega, Ramírez e Violeta Chamorro —eleita presidente em 1990.

Em 1984, convocaram-se eleições, vencidas por Daniel Ortega. Ramírez foi seu vice-presidente de 1985 a 1990.

Em entrevista à Folha, em Guadalajara, no México, ele falou de sua desilusão com a revolução, do "fracasso em melhorar o país" e da transformação do antigo aliado Ortega "em um populista comum e conservador".

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Folha - Há quem fale de uma "primavera da América Central", por causa dos protestos contra a corrupção. Por outro lado, a região possui índices de violência altos. Como a vê?

Sergio Ramírez - A vantagem da América Central é sua integridade territorial, uma história e uma tradições culturais muito enraizadas e compartilhadas.

Já no que diz respeito a política e economia, há menos território comum para que exista entendimento. Alguns países ainda resistem em dialogar com outros, fecham-se em seus problemas.

Não somos países viáveis economicamente se vivermos isolados, e temos de compreender isso.

Seu novo romance, "Ya Nadie Llora por Mi" (ninguém mais chora por mim, ed. Alfaguara), tem um personagem com um passado de atuação na luta sandinista. É um alter ego?

Em certo sentido, sim, pois temos um ponto de vista parecido sobre a história recente do país. Mas as trajetórias são diferentes: o protagonista é um ex-combatente, e eu nunca atuei na luta armada.

O personagem do livro é um policial aposentado que se transformou em investigador particular. Mas tem um passado guerrilheiro e está mutilado, perdeu uma perna. É um arquétipo daqueles que, como eu, sofreram um desencanto com a revolução.

O sr. vive hoje praticamente apenas da literatura. Sente que abandonou a política? Ela está em seus livros...

Eu não renego meu passado sandinista de modo nenhum. Porém, sempre ressalto que entrei na revolução, mas não na política. Nunca tive o projeto de fundar um partido e de competir em eleições. Entrei para a Frente Sandinista porque havia um chamado geral às pessoas sensatas para derrubar a ditadura de Somoza.

Depois que tomamos o poder, era preciso ocupá-lo. Primeiro, integrei a Junta de Governo. Em seguida, disputei as eleições com Daniel Ortega, [como vice] e ocupei o cargo.

Mesmo nas piores circunstâncias da luta contra Somoza e depois, na guerra contra os contras [rebeldes que tentaram derrubar a Frente Sandinista, com apoio dos EUA], nunca deixei de escrever. Era preciso refletir sobre o que ocorria, e eu fazia e ainda faço isso a partir da literatura.

Depois, saí da Frente Sandinista por não estar mais de acordo com o rumo das coisas, e fundamos o Movimento Renovador Sandinista [pelo qual foi candidato presidencial em 1996]. Mas logo optaria por ficar só na literatura, porque a revolução não cumpriu aquilo a que nos propusemos.

Quando o sr. vê e ouve Ortega hoje, que sensação lhe produz?

Sinto que mudou tudo. É outra situação, em que permaneceu apenas a retórica revolucionária, com seu discurso anti-imperialista e anticapitalista. Mas nada disso é verdade, porque o governo de Ortega tem uma aliança profunda com os grandes empresários.

Por outro lado, me dói perceber que a Nicarágua não mudou estruturalmente em quase nada. Metade da população vive na pobreza aguda, e mais de 70% dos empregos são informais.

Ortega virou essa espécie contemporânea de populista que, com o dinheiro que Hugo Chávez (1954-2013) lhe deu, investiu em programas sociais. Mas nem nisso foi eficaz.

Algumas das bandeiras progressistas da época, pelo menos, permaneceram, ou não?

Não. Ao contrário, elas foram todas abandonadas. Temos um Estado muito católico, nada laico. A Nicarágua é um dos cinco países no mundo que proíbe o aborto em qualquer circunstância, e não se avançou em direitos a minorias, não se legalizou o casamento homossexual.

Há censura à imprensa?

Há um tipo particular de censura à imprensa, com outro procedimento que não as intervenções do passado. Com o dinheiro venezuelano, o governo comprou praticamente todas as emissoras de televisão e de rádio. Restam um canal e um jornal mais independentes, que o regime deixa que existam apenas para que não se diga que não há nenhuma liberdade de expressão.

O sr. considera o regime de Ortega um novo tipo de ditadura?

Sim, porque as instituições estão lá, mas anuladas. Temos um Congresso que já declarou que não está ali para legislar, apenas para aprovar o que o Executivo mandar. Um Congresso em que não há representantes da oposição. Nossa Corte Suprema é muito dócil, e as decisões judiciais sempre estão sujeitas à intervenção do poder político.

Como o sr. explica que, mesmo rodeada de países que vivem surtos de violência, a Nicarágua experimente uma paz relativa?

A segurança pública na Nicarágua foi estabelecida ainda antes de Ortega voltar ao cargo, em 2006. Nos anos 1990, durante o governo de Violeta Chamorro, houve uma reorganização do Exército e da polícia. Hoje, mesmo alinhadas ao governo, as forças de segurança seguem sendo muito profissionais e impediram a entrada na Nicarágua das "maras" [facções criminosas] de El Salvador, Honduras e Guatemala.

O sr. crê que o país está a salvo, portanto?

Não, de forma nenhuma, há uma tentativa constante das "maras" de entrar na Nicarágua. Já vimos episódios de demarcação de território, como corpos despedaçados e cabeças que apareceram em algumas regiões da fronteira.

Há alguma outra característica específica para explicar essa relativa paz no país?

Sim, creio que, na Nicarágua, pesa muito a memória da violência. Mesmo que a maioria das pessoas, cerca de 70% da população, tenha menos de 30 anos, ou seja, não tenha vivido a guerra, há uma recordação coletiva que se transmite de uma geração para outra.

Há uma consciência coletiva de que a guerra não deve se repetir.

A jornalista viajou a convite da organização da Feira Internacional do Livro de Guadalajara.


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