Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Política externa de Trump deixa os EUA em último lugar

Ao concluir o discurso sobre segurança nacional que pronunciou no começo do mês, o presidente Donald Trump descreveu seu objetivo de política externa como "celebrar a grandeza americana como um exemplo reluzente para o mundo".

Não exatamente.

No final de seu primeiro ano no posto, a abordagem do presidente quanto aos assuntos internacionais não se encaixa na narrativa apresentada em seu discurso e, em lugar disso, se alinha a seis componentes que demonstram a visão de mundo de Trump no exterior: política importa mais do que estratégia, ditadores valem mais que democratas, América em primeiro lugar ("America First", um de seus lemas na campanha), aversão a riscos, desconstrução e ego.

Isso não constitui uma doutrina claramente definida, mas os componentes apresentam uma certa coesão — ao menos na cabeça de Trump— e indicam de que maneira ele deve operar pelo resto de seu mandato.

Joshua Roberts/Reuters
Trump aplaude após discursar sobre a nova estratégia de segurança nacional dos EUA
Trump aplaude após discursar sobre a nova estratégia de segurança nacional dos EUA

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AMÉRICA EM PRIMEIRO LUGAR

O ponto de partida de qualquer esforço para decodificar a política externa de Trump é compreender o que ele quer dizer com "América em primeiro lugar" —expressão que envolve menos um conjunto de regras do que um estado de espírito.

Na visão do presidente, os Estados Unidos vêm sendo prejudicados há anos por "acordos comerciais desastrosos", aliados parasitas e compromissos assumidos pela elite de Washington que arrastaram o país para guerras intermináveis e dispendiosas e para esforços de construção de nações que resultaram em uma deterioração da prosperidade americana, em um mundo selvagem e hostil como o que Trump descreveu em seu discurso de política externa.

A visão de mundo de Trump é bem parecida com a sua visão dos negócios —um jogo cruel em que, para que alguém ganhe, alguém precisa perder, os fracos existem para serem explorados, e só os fortes emergem como verdadeiros vencedores. Essas são opiniões que ele manteve por toda a vida; não são um arcabouço ideológico imposto a um presidente ingênuo em seu primeiro mandato por conta das manipulações de Steve Bannon.

América primeiro é só uma variação de Trump primeiro, e é por isso que a visão do presidente subordina o interesse nacional dos Estados Unidos a uma visão de mundo egoísta e singularmente inadequada diante dos complicados desafios que o país tem pela frente.

MAIS POLÍTICA QUE ESTRATÉGIA

Para compreender Trump, é útil vê-lo não como um presidente que chegou com uma proposta de política externa, mas como um estreante na política que está tentando fazer o papel de presidente na TV. Sua abordagem quanto à política externa é orientada pela necessidade de aplacar constantemente o eleitorado que o conduziu ao posto, e não necessariamente por metas que sirvam aos interesses estratégicos de longo prazo desses eleitores ou dos aliados dos Estados Unidos.

O guru ideológico do presidente, Steve Bannon, já não vive na Casa Branca, mas sua lista de tarefas —de "construir um muro na fronteira com o México e fazer com que o México pague por ele no futuro" a transferir a embaixada norte-americana em Israel de Tel Aviv para Jerusalém— continua a ser prioridade.

Em fevereiro, o senador Bob Corker, republicano do Tennessee, disse ao site Politico que "em dado momento", Trump e sua equipe "estavam preparados para transferir a embaixada" a Jerusalém "no minuto em que tomassem posse" —uma decisão que teria parecido arbitrária então e que continuou a sê-lo quando o presidente a anunciou este mês, contrariando os conselhos de diversos assessores.

O abandono imediato da Parceria Transpacífico por Trump; sua decisão arbitrária de deixar o acordo de Paris sobre o clima; e as diversas versões de sua restrição à entrada de cidadãos de diversos países muçulmanos nos Estados Unidos são valiosos como gestos na direção de sua base, mas não têm valor como estratégia.

A retórica de campanha do presidente e sua determinação de ser o anti-Obama até agora vêm predominando e, com a aproximação das eleições legislativas de 2018 e da eleição presidencial de 2020, devemos esperar que os impulsos políticos de Trump cada vez mais se sobreponham à governança —no país e no exterior.

O EGO PRESIDENCIAL

Tony Schwarz, que coescreveu "A Arte do Acordo" com o presidente, afirmou este ano ano que "o senso de valor próprio de Trump está sempre em risco".

O presidente é propelido por profundas inseguranças e por uma necessidade descomunal de adoração e de brilhar mais que os outros, que esteve visível em seu discurso de aceitação da candidatura republicana, quando ele declarou que "só eu serei capaz de consertar" os problemas do sistema americano.

Isso também ficou perceptível em seu discurso sobre segurança nacional, quando ele declarou que "por muitos anos, nossos cidadãos assistiram aos políticos de Washington presidindo a uma sucessão de decepções".

Ele se considera o maior negociador do planeta, mas aliados e adversários já sabem como lidar com o presidente: se você adular e festejar Trump —como os sauditas e israelenses fizeram em sua primeira visita ao exterior, e como os japoneses e chineses fizeram em sua primeira viagem à Ásia—, ele se mostra maleável. Como exemplos, basta citar sua disposição de ignorar o registro atroz da Arábia Saudita quanto aos direitos humanos e a campanha militar do país no Iêmen, sua falta de pressão sobre Israel quanto às atividades de colonização indesejáveis, e sua decisão de não pressionar o Japão e a China quanto ao comércio internacional.

TRUMP, O DESCONSTRUCIONISTA

Apesar de sua fama como construtor, Trump se mostrou muito mais capacitado no ramo da demolição e do desmonte, e dedicou muito de seu tempo a desmantelar o que foi construído por seus predecessores —especialmente Obama—, sem oferecer alternativas viáveis para substituição.

Um exemplo importante é o acordo nuclear com o Irã, que tem falhas, mas vinha funcionando e é bem melhor do que não haver acordo.

Trump não explica a lógica e nem oferece detalhes específicos para sustentar sua afirmação de que o acordo com o Irã é "incompreensivelmente ruim", e diplomatas experientes já perceberem que ele não é grande coisa em criar acordos. Se não fosse por subordinados de cabeça mais fria, como o secretário de Estado Rex Tillerson e o secretário da Defesa Jim Mattis, Trump talvez já tivesse abandonado o acordo (e pode ser que ainda venha a fazê-lo), o que permitiria que o Irã avançasse a todo vapor com suas ambições nucleares e isolaria os Estados Unidos dos demais signatários do tratado.

AVERSÃO A RISCOS

É irônico que, para um presidente que deseja desesperadamente parecer durão e forte, Trump seja tão cauteloso e tão avesso a riscos quanto seu predecessor, quando o assunto é usar o poderio militar dos Estados Unidos.

Ainda que seu governo tenha recentemente anunciado a venda de armas "letais" que haviam sido negadas à Ucrânia por muito tempo, desafiando a Rússia, Trump, quanto a essas questões, é mais uma cópia de Obama do que o anti-Obama.

Apesar de toda a retórica belicosa do presidente com relação à Coreia do Norte —"fogo e fúria", "armado e pronto para disparo" e assim por diante— ele ainda não ordenou ação militar; Trump retaliou ao uso de armas químicas pelas forças do presidente Bashar al-Assad, da Síria, com um ataque limitado por mísseis (ainda que ele, como Obama, dispusesse de opções muito mais robustas), e encampou discretamente a estratégia de Obama para combater o Estado Islâmico.

Quanto ao uso de força militar por Trump, há mais sinais vermelhos e amarelos do que sinais verdes. O mundo continua turbulento e imprevisível, mas Trump parece ter aceitado, pelo menos por enquanto, a posição das Forças Aarmadas, que veem a projeção do poderio militar dos Estados Unidos como instrumento a ser usado cuidadosamente, em busca de objetivos realistas.

Esperemos que esse continue a ser o caso com relação à Coreia do Norte —um cenário no qual o ego de Trump, sua irresponsabilidade, a situação política interna dos Estados Unidos e a impulsividade de Kim Jong-un podem se combinar para criar uma catástrofe.

DITADORES DE PREFERÊNCIA A DEMOCRATAS

A nova linha de segurança nacional do governo define China e Rússia como "competidores" e promete reação mais vigorosa aos seus esforços para desordenar o status quo mundial.

Talvez o presidente tenha tido uma epifania sobre os dois principais rivais geopolíticos dos Estados Unidos, mas a retórica hostil é contraditada por sua simpatia para com os ditadores desses dois países, o presidente Xi Jinping e o presidente Vladimir Putin.

Parece cada vez mais provável que ele aja contra a China no campo comercial, com medidas antidumping e retaliações contra os chineses pelo roubo de propriedade intelectual, mas a Rússia continua a receber passe livre.

A preferência de Trump pelos ditadores é evidenciada por seu tratamento preferencial aos ditadores responsáveis por violações dos direitos humanos na Arábia Saudita, Egito, Filipinas e Turquia, enquanto ao mesmo tempo agride verbalmente líderes democráticos, entre os quais a primeira-ministra alemã Angela Merkel, cuja política para com os refugiados ele descreveu como "erro catastrófico"; e o presidente sul-coreano Moon Jae-in, que ele acusou de "apaziguamento" dos norte-coreanos em um rompante no Twitter.

Trump merece crédito por ter desferido um golpe fatal contra os territórios conquistados pelo Estado Islâmico no Iraque e na Síria —sua única realização elogiável até agora, no campo da segurança nacional. Mas o padrão pelo qual a política externa de Trump deve ser julgada não é seu sucesso em resolver os problemas complicados do planeta.

A questão é determinar se sua abordagem poderá administrar os desafios que os Estados Unidos são incapazes de resolver de maneira que promova nossos interesses e ao mesmo tempo evite crises internacionais, a exemplo de escaladas nos conflitos com o Irã e, especialmente, a Coreia do Norte, que poderiam prejudicar esses interesses de maneira irreparável.

Passado quase um ano, o histórico de Trump não inspira confiança. Sua visão de mundo não promove uma calibragem cuidadosa dos meios e objetivos, e tampouco define os verdadeiros interesses nacionais dos Estados Unidos, e faz deles prioridades. Em lugar disso, é provável que o presidente coloque os interesses americanos em último, e não primeiro, lugar, quanto a diversas questões críticas para a prosperidade e segurança do país em longo prazo.

AARON DAVID MILLER é vice-presidente do Woodrow Wilson Center e foi analista e negociador no Departamento de Estado, em governos republicanos e democratas.

RICHARD SOKOLSKY é pesquisador do Carnegie Endowment for International Peace, e foi integrante do Escritório de Planejamento Estratégico do Departamento de Estado entre 2005 e 2015.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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