Folha de S. Paulo


Aos 70 anos de independência, Índia vê crescer risco nacionalista

Baps Akshardham/AFP
This handout picture taken and released by on November 2, 2017, by BAPS Akshardham Temple shows Indian Head of socio-spiritual hindu organisation BAPS Mahant Swami Maharaj (L), Sadhu Keshavjivandas, and Indian Prime Minister Narendra Modi (R) performing the hindu ritual known as 'Abhishek' on an idol of Lord Swaminarayan Nilkanth Varni at Akshardham temple in Gandhinagar, some 30 kms from Ahmedabad, as Modi graced the temple's Silver Jubillee Celebrations. / AFP PHOTO / BAPS Akshardham Temple / - / RESTRICTED TO EDITORIAL USE - MANDATORY CREDIT
Premiê indiano, Narendra Modi (à dir.), faz ritual hindu com líder espiritual M. Swami Marahaj

No dia 28 de setembro de 2015, um grupo de hindus munidos de paus e tijolos invadiu a casa do muçulmano Muhammad Akhlaq, 50, em um vilarejo no norte da Índia. Akhlaq levou tijoladas até morrer, e seu filho Danish, 22, ficou gravemente ferido.

O crime dos Akhlaq: teriam comido carne de vaca, animal considerado sagrado pelo hinduísmo. (A polícia determinou depois que a carne que eles guardavam no freezer, e que seria a prova do "crime", era de cordeiro).

Desde que o premiê Narendra Modi e o partido nacionalista hindu BJP assumiram o poder na Índia, em maio de 2014, 60 pessoas foram alvo de linchamento por supostamente terem comido carne de vaca ou vendido gado para abatedouros, segundo o site de dados IndiaSpend —20 vezes o total de linchamentos por causa de vacas registrado entre 2010 e 2014.

Dessas, 28 morreram. Quase todas eram muçulmanas.

Ao completar 70 anos de independência do Reino Unido, a democracia indiana está sob ameaça.

Desde a onda de violência que se seguiu à grande divisão da Índia, que deu origem a um Estado hindu e um muçulmano, o Paquistão, gerações de líderes reconheceram que a tolerância e a secularidade são essenciais para governar um país com tamanha diversidade religiosa, linguística, étnica e cultural.

Com 1,3 bilhão de habitantes, a Índia deve superar a China em 2024 como país mais populoso do mundo. Hindus são a maioria, 80%, mas há 172 milhões de muçulmanos (14,2% da população), além de cristãos, sikhs, parsis, judeus e outras minorias.

O primeiro-ministro Modi abandonou a agenda para uma Índia inclusiva: propõe uma agenda de desenvolvimento econômico aliada a medidas que agradam aos nacionalistas hindus.

Modi se formou nas fileiras da Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS, ou Sociedade Patriótica Nacional), que promove a ideia do Hindutva (Hindusidade) —basicamente, a Índia para os hindus.

Os nacionalistas da RSS, e de seu braço político, o BJP, querem que o país recupere os anos de glória que precedem os colonizadores britânicos e os invasores Mughal (muçulmanos). Apostam que a fórmula Hindutva mais desenvolvimento vai "fazer a Índia grandiosa de novo".

DISCURSO DÚBIO

Mas quando se elegeu em 2014, Modi minimizou suas credenciais hindus e enfatizou a proposta de espalhar pelo país o chamado "milagre de Gujarat", Estado com alta taxa de crescimento, que ele governou de 2001 a 2014.

"O nacionalismo hindu moldou a visão de mundo de Modi, mas ele usa a retórica do desenvolvimento para atrair a classe média da Índia, que não dá tanta importância à política identitária", disse à Folha Irfan Nooruddin, diretor da Iniciativa Índia da Universidade Georgetown (Washington, EUA).

No entanto, duas medidas desastradas sabotaram os indicadores econômicos da gestão Modi, antes impressionantes. A decisão "anticorrupção" de tirar de circulação notas de 500 e 1.000 rúpias (cerca de 85% das notas em circulação) causou caos na economia. A implementação atabalhoada do novo imposto sobre bens e serviços foi mais um golpe contra os pequenos empreendedores.

Como consequência, o crescimento do PIB, que atingiu média de 7,5% entre 2014 e 2017, caiu para 5,7% no segundo trimestre de 2017, em um país que precisa crescer acima de 6% para absorver as 12 milhões de pessoas entram no mercado de trabalho a cada ano.

E os nacionalistas hindus, sob Modi, ficaram cada vez mais ambiciosos. O BJP está reescrevendo livros didáticos em vários Estados —propõe "desocidentalizar" os textos, mas também está extirpando minorias, em nome de um orgulho patriótico hindu.

Em março de 2017, Modi indicou o líder hindu Yogi Adityanath para governar Uttar Pradesh, Estado com a maior população muçulmana da Índia. Adityanath já afirmou que, caso um muçulmano mate um único hindu, cem muçulmanos devem ser mortos em retaliação.

Nem o Taj Mahal escapou de sua fúria. O mausoléu construído pelo imperador muçulmano Shah Jahan foi omitido do catálogo de turismo do Estado e teve seu orçamento cortado. Sangeet Som, integrante do BJP, disse que o Taj Mahal era uma "mancha na cultura Indiana" construída por "traidores".

ANTINACIONAL

Os extremistas hindus usam indiscriminadamente o epíteto "antinacional" para perseguir intelectuais e jornalistas que criticam o nacionalismo ou o BJP. Um dos alvos foi o ganhador do Nobel Amartya Sen.

Outros têm destino trágico. Em setembro deste ano, a jornalista Gauri Lankesh, que comparou o nacionalismo hindu do RSS ao fascismo, foi morta a tiros na frente de sua casa, em Bangalore.

"A democracia indiana enfrenta muitas ameaças, a maior delas é o crescimento do autoritarismo", disse à Folha Sumit Ganguly, coordenador de estudos sobre a civilização indiana na Universidade de Indiana em Bloomington.

"O constante ataque contra a liberdade de expressão é alarmante."

Não se pode culpar diretamente Modi ou a RSS por essa escalada de violência contra a minoria muçulmana e a oposição. Mas a retórica inflamada deles promove esse clima de intolerância, aponta Ganguly.

Mesmo assim, analistas apontam que é precoce decretar a morte da resiliente democracia indiana, onde o contraditório sobrevive na imprensa e no judiciário.

Indianos brincam que democracia só atrapalha, basta ver a rapidez com que as reformas são implementadas na ditadura chinesa. Neste caso, o caos democrático indiano, com inúmeros partidos, níveis de governo, sociedade civil e imprensa, tem impedido que uma doutrina como o Hindutva prevaleça.


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