Entre os tantos desiludidos no Curdistão iraquiano após o projeto de um Estado independente ter ruído, na base militar de Khazir a frustração é quase palpável.
Soldados do Exército regional curdo, conhecido como peshmerga, recebiam ali as ordens de combate à facção terrorista Estado Islâmico, e ali pensaram que sua participação na guerra poderia ser revertida em mais autonomia para essa região iraquiana.
Seus batalhões, apoiados por forças internacionais, foram fundamentais para a derrocada dos militantes nestes três anos —algo que hoje repetem com orgulho.
Com esse otimismo, os peshmerga foram às urnas em 25 de setembro para um plebiscito separatista que atraiu 73% do eleitorado. "Você acha que, depois de sacrificar minha vida na guerra, eu não participaria da consulta?", pergunta o soldado Ali Ahmad, 34.
Mas o governo iraquiano não só refutou o resultado —foram 93% dos votos a favor da separação— como retomou parte do território ocupado pelos curdos, entregando postos de controle a milícias hostis à população local. Os voos internacionais para capital curda, Erbil, foram direcionados para Bagdá.
"É injusto, depois de tudo o que fizemos, termos que passar por isso", diz o major-general Dedawan Khorshid, 48, o responsável pelas operações na região de Khazir.
Pode ter parecido óbvio aos demais atores regionais que o Curdistão iraquiano não iria ganhar mais autonomia com o referendo. Países como Irã e Turquia se opunham à consulta. Mesmo os EUA, o Reino Unido e a ONU alertaram para os riscos.
Mas, nas bases militares, e entre soldados celebrando suas vitórias, havia a impressão —ou expectativa— de uma recompensa política. "Se hoje ofereço uma xícara de chá, imagino que você não vai me negar uma caneta se eu precisar amanhã", diz.
Foi grande a surpresa e a indignação entre soldados curdos, portanto, quando o premiê iraquiano, Haider al-Abadi, fez o discurso de sua vitória contra o Estado Islâmico em 9 de dezembro.
Ele agradeceu a milícia xiita Hashd al-Shaabi, apoiada pelo Irã, mas não citou os peshmerga —que hoje fazem parte do Exército iraquiano, segundo a Constituição.
"O Estado Islâmico não é uma ameaça apenas ao Iraque, mas a todo o mundo, e lutamos por todos sacrificando nosso sangue e o de nossos irmãos", diz Khorshid. "Votamos em um processo democrático, e veja o que aconteceu conosco."
ESCOLHA
Os peshmerga não derrotaram o EI sozinhos. As batalhas dos últimos três anos foram uma complexa intersecção de forças internas e externas. Os bombardeios da coalizão internacional foram uma peça-chave na guerra.
Mas o Exército curdo, que contou com uma eficiente máquina de propaganda e com os relatos positivos da imprensa global, acabou virando símbolo do processo.
Quando os embates começaram, em 2014, seus soldados lutavam com um armamento básico, como fuzis AK-47, e sem treinamento para a contra-insurgência em áreas urbanas. "Atualizamos nosso arsenal com a ajuda externa e ganhamos experiência, o que incomodou Bagdá", diz Arif Tayfor, líder peshmerga da região de Khazir e deputado no Parlamento iraquiano pelo Partido Democrático do Curdistão até 2015.
"Ajudamos o Iraque a liberar Mossul do controle do Estado Islâmico e agora eles estão lutando contra as nossas forças", afirma. Houve tensões quando Bagdá retomou em outubro os territórios ocupados pelos curdos nos últimos anos, como a região petrolífera de Kirkuk.
Sentado diante de mapas da região, na sala em que planeja as ações, Tayfor diz ter notado movimentação de tropas iraquianas nos últimos dias, e prevê novas tensões. "Nós não queremos lutar. Mas, se fomos atacados, não teremos outra escolha."