Folha de S. Paulo


Opinião

Os EUA já não são mais uma força global pelo bem

A estratégia de Segurança Nacional de Trump é marcada por uma diferença drástica dos planos de seus antecessores, tanto republicanos como democratas, pintando um cenário sombrio, quase distópico, de um mundo "extraordinariamente perigoso", caracterizado por países hostis e ameaças escondidas.

Pouco menciona a força inigualável dos EUA em termos políticos, militares, tecnológicos e econômicos, ou as oportunidades do aumento da prosperidade, da liberdade e da segurança através de uma liderança de princípios, base da política externa norte-americana desde a Segunda Guerra Mundial.

Mark Wilson - 18.dez.2017/Getty Images/AFP
O presidente dos EUA, Donald Trump, apresenta estratégia de segurança nacional em Washington
O presidente dos EUA, Donald Trump, apresenta estratégia de segurança nacional em Washington

Na opinião de Trump, vivemos em um mundo onde os EUA ganham apenas às custas dos outros. Não há bem comum, nem comunidade internacional, nem valores universais, só os norte-americanos.

O país não é mais "uma força global pelo bem", como pregava a estratégia de Obama, ou "a cidade luminosa no topo da colina", de acordo com a visão de Reagan; a nova estratégia consagra a mentalidade de soma zero: "A proteção dos interesses norte-americanos exige uma competição contínua nas disputas que se desenrolam em várias regiões do mundo."

Essa é a marca registrada da estratégia nacionalista, em preto e branco, chamada "Os EUA em Primeiro Lugar".

Acontece que o mundo é cinza e o plano de Trump tem dificuldade em estipular qualquer diferença sutil. O tempo todo China e Rússia são tratadas como adversários semelhantes. Na verdade, uma é nossa concorrente, e não uma oponente declarada, e nunca ocupou ilegalmente os vizinhos.

A outra, tanto quanto a estratégia permite, se opõe agressivamente à Otan, à União Europeia, aos valores ocidentais e à liderança global norte-americana; ocupou descaradamente territórios georgianos e ucranianos e matou milhares de inocentes para salvar um ditador na Síria.

É nossa adversária —e, no entanto, o programa de Trump teimosamente se recusa a reconhecer seu ato mais hostil, ou seja, a interferência direta nas eleições presidenciais de 2016 para seu benefício próprio.

Eu desconfio que os mais realistas na Casa Branca, para se eximirem do constrangimento de corroborar com um plano que ignora o comportamento hostil russo, concordaram em aglutinar China e Rússia e quase sempre mencionam os chineses primeiro para aplacar os colegas nacionalistas que a odeiam, mas admiram os russos —e o resultado é uma análise errônea que, no fim das contas, pode aproximar essas duas potências.

Em vários aspectos, incluindo armamento nucleares e controle de armas, contraterrorismo, inteligência, armas de destruição em massa, ameaças cibernéticas, política espacial, práticas comerciais injustas e roubo de propriedade intelectual, a estratégia segue a política de segurança nacional bipartidária tradicional norte-americana, pouco diferindo da resolução de um presidente republicano tradicional.

Em outras áreas, diligentemente corrige o discurso errático do governo, como também reconfirma nossos aliados e parceiros e o compromisso com o Artigo 5º, de defender a Otan.

A estratégia reconhece a ameaça das pandemias e riscos biológicos e a importância de reforçar a segurança da saúde global —e mantém o compromisso, pelo menos nominal, de estimular a autonomia feminina e fornecer assistência humanitária generosa.

Porém, os nacionalistas à volta de Trump conseguiram ratificar sua dura política anti-imigração, desde o muro fronteiriço ao fim das preferências familiares, limitando a admissão de refugiados.

Reforçaram a preferência dos acordos comerciais bilaterais sobre os multinacionais e reiteraram a revogação da Parceria Transpacífico, o que deve ajudar o expansionismo econômico e estratégico da China na Ásia.

O resultado é um tratamento insular e ideológico do nosso mundo tão complexo, basicamente impermeável aos fatos e não levando em conta os interesses dos EUA.

O plano explicitamente omite muitas prioridades nacionais tradicionais: em momento algum menciona a expressão "direitos humanos" ou "pobreza extrema"; não fala da educação superior, do combate ao HIV/Aids, nem a busca pela paz permanente entre israelenses e palestinos.

Ausente também está qualquer discussão sobre a população abaixo dos trinta anos (que compõe mais de 50 por cento dos habitantes do planeta), a sociedade civil ou a importância da promoção da democracia e dos direitos universais.

A "mudança climática" desapareceu, como também a ameaça que representa para a nossa segurança nacional. Não há uma palavra que expresse preocupação em relação aos direitos dos oprimidos, principalmente a comunidade LGBT.

Essas omissões afetam a percepção global da liderança norte-americana; pior ainda, comprometem nossa capacidade de convencer o mundo a defender nossa causa, já que ignoramos solenemente as aspirações alheias.

O plano também contém verdadeiros disparates. Anuncia diplomacia, enquanto Trump e seu secretário de Estado, Rex Tillerson, esvaziam o departamento de recursos, talento e relevância; enaltece a "imprensa livre", quando Trump rotineiramente achincalha nossos órgãos de imprensa mais respeitados, qualificando-os como "falsos", ameaçando seus funcionários e funcionamento; alega que os EUA "rejeitam o preconceito e a opressão, visando um futuro baseado em nossos valores enquanto povo unido" quando o presidente denigre as mulheres, usa uma linguagem racialmente pejorativa e se mostra hesitante na crítica a extremistas antissemitas e neonazistas.

É de se pensar como é possível levar a sério um documento que diverge tão drasticamente das palavras e ações do próprio presidente.

Essas contradições são importantes, assim como a aceitação entusiasmada por parte do governo de uma visão confrontadora e egoísta do mundo.

Nem sempre a estratégia de segurança nacional deixa um legado permanente, mas é uma articulação importante das prioridades de determinada administração, ou seja, é a mostra de si mesma para um mundo que se preocupa profundamente com as ambições e interesses norte-americanos.

Há tempos a pujança dos EUA é representada não só pela economia e poderio militar incomparáveis, mas pela força de nossos ideais. Abdicar da autoridade moral nestes tempos tão difíceis só fortalecerá os inimigos e nos enfraquecerá perante o mundo. E torna ridículo o conceito que prega o país acima de tudo.

SUSAN RICE foi conselheira de segurança nacional de 2013 a 2017 e embaixadora dos EUA na ONU.


Endereço da página:

Links no texto: