Folha de S. Paulo


Sanções prejudicam ajuda humanitária para a Coreia do Norte

As sanções cujo objetivo é punir o regime norte-coreano estão prejudicando a capacidade de organizações humanitárias de operar na Coreia do Norte, e isso gerou alertas de que a campanha internacional está prejudicando os norte-coreanos comuns.

A dificuldade de obter suprimentos, entre os quais equipamentos médicos, e de transferir dinheiro para bancar programas assistenciais pode ter impacto direto sobre os níveis de saúde e nutrição em toda a Coreia do Norte, dizem observadores da situação.

"Precisamos lidar com o problema nuclear, mas também precisamos ponderar corretamente a maneira de atingir esse objetivo", disse Tomas Ojea Quintana, o observador especial das Nações Unidas para questões de direitos humanos na Coreia do Norte, em entrevista em Tóquio.

A situação de cerca de 70% da população norte-coreana já é classificada como de "insegurança alimentar", o que significa que a fome é ameaça constante, e cerca de 25% das crianças do país sofrem dificuldades de crescimento.

As sanções podem agravar a insegurança alimentar a incidência de subnutrição aguda nas crianças.

"Não estamos falando apenas de estatísticas, mas da realidade da RDPC", disse Quintana, usando a abreviação do nome oficial da Coreia do Norte (República Democrática Popular da Coreia).

O Programa Mundial de Alimentos da ONU, a Unicef, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Programa de Desenvolvimento da ONU mantêm operações na Coreia do Norte. Algumas poucas organizações assistenciais, americanas e de outros países, oferecem assistência alimentar, médica e agrícola, de bases fora do país.

Mas as ondas de sanções multilaterais e as sanções americanas diretas impostas ao regime do ditador Kim Jong-un depois de seus testes nucleares e de mísseis tornaram as operações assistenciais tão difíceis que algumas agências estão suspendendo suas atividades no país. A Save the Children interrompeu temporariamente suas operações em Pyongyang, classificando a decisão como "suspensão temporária".

"As ONGs humanitárias americanas e internacionais que trabalham na Coreia do Norte estão morrendo aos poucos", disse Keith Luse, diretor executivo do Comitê Nacional sobre a Coreia do Norte, sediado em Washington, que tem entre seus membros diversas agências humanitárias,

"As sanções não eram direcionadas ao povo, mas ele se tornou vítima do regime internacional de sanções", disse Luse.

As dificuldades vêm crescendo, à medida que as medidas punitivas se expandem das chamadas "sanções inteligentes", concebidas para cortar o fornecimento de componentes e verbas ao programa armamentista, para medidas mais amplas que já se assemelham a um embargo comercial.

O presidente Donald Trump prometeu usar "pressão máxima" para persuadir a Coreia do Norte a abrir mão de seu programa de armas nucleares.

As sanções impostas em setembro pelo Conselho de Segurança da ONU, a pedido dos Estados Unidos, bloquearam as exportações norte-coreanas de frutos do mar, roupas e carvão, o que veio se somar ao bloqueio da exportação de commodities.

O Japão, que ocupa a presidência rotativa do Conselho de Segurança está instando os demais países membros a que cortem sua assistência humanitária à Coreia do Norte.

A campanha vem tendo impacto tangível.

O governo britânico anunciou que suspenderia o envio de assistência à Coreia do Norte. "Usaremos todos os meios que temos para deixar claro nosso desprazer diante das provocações irresponsáveis de Kim Jong-un", disse Mark Field, o ministro britânico encarregado de relações com a Ásia, à agência de notícias sul-coreana Yonhap News, em Seul no mês passado.

O governo sul-coreano, que prometeu não permitir que considerações políticas afetassem suas decisões humanitárias, não cumpriu seu compromisso de doar US$ 8 milhões ao Programa Mundial de Alimentos e à Unicef, verbas destinadas a crianças e mulheres grávidas.

Seul continua "em consultas" com as duas organizações, disse Choi Ji-seon, ministro da Unificação sul-coreano.

Para as relativamente poucas organizações assistenciais que continuam a ajudar os norte-coreanos, os desafios burocráticos de operar em um país já repleto de dificuldades não param de crescer.

As sanções estão se tornando "preocupação séria" para as agências da ONU que operam na Coreia do Norte, e poderiam "prejudicar as atividades de socorro e assistência", afirmou Tapan Mishra, o coordenador residente da ONU em Pyongyang, em cartas a dirigentes da organização no final de outubro.

"Itens cruciais de assistência, entre os quais equipamentos médicos e remédios, têm suas entregas suspensas por meses apesar de contarem com a documentação requerida, que especifica que não constam da lista de itens sob sanção", ele escreveu nas cartas, reportadas inicialmente pelo NK News, um site de notícias sobre a Coreia do Norte.

Entre os itens bloqueados estão máquinas de anestesia usadas para cirurgias de emergência e máquinas digitais de raio-X necessárias para o diagnóstico de tuberculose.

As agências assistenciais americanas devem obter licenças dos departamentos do Comércio ou Tesouro para o envio dos bens necessários ao seu trabalho na Coreia do Norte, e agora necessitam também de licença especial para o transporte aéreo de suprimentos urgentemente necessários, por exemplo material médico, porque a Air Koryo, a companhia nacional de aviação da Coreia do Norte, é um dos alvos das sanções.

"Tudo é muito complicado, e inédito para nós", disse um assistente social americano, que falou sob a condição de que seu nome não fosse mencionado porque existem negociações delicadas em curso. "Foram semanas e meses de diálogo e de consultas a advogados. É muito complexo e desafiador, mas se não o fizermos, não haverá como continuar".

As autoridades alfandegárias chinesas também estão restringindo os embarques direcionados à Coreia do Norte —e em grau até surpreendente, dada a implementação nada rigorosa que Pequim costumava aplicar às sanções internacionais, no passado.

Os chineses estão sendo mais severos quanto aos embarques, e solicitam listas detalhadas, que incluem nome dos fabricantes e listas dos materiais usados em cada item. Um contêiner carregado de cadeiras de rodas enviado por uma agência de assistência social sul-coreana foi bloqueado pela China, bem como uma carga de pastilhas de purificação de água dirigida a vítimas de uma inundação, de acordo com pessoas informadas sobre os incidentes.

Um assistente social baseado em Pyongyang disse que fornecedores sediados na China também haviam imposto sanções por conta própria.

"Alguns fornecedores chineses que nos enviavam matérias-primas de que precisamos para nossos projetos simplesmente sumiram do mapa", disse o assistente social, que pediu que seu nome não fosse revelado para não colocar em risco seu trabalho humanitário. "Eles não estavam fazendo coisa alguma que as sanções proíbam, mas decidiram que manter a assistência pode ser um risco para sua reputação".

Os bancos chineses, enquanto isso, se recusam a transferir dinheiro relacionado à Coreia do Norte, dizem os assistentes sociais, que estão tentando transferir dinheiro a fornecedores chineses a fim de pagar por equipamento médico para uso na Coreia do Norte. O dinheiro vem sendo bloqueado mesmo nos casos em que o fornecedor é uma empresa chinesa.

Os jornalistas estrangeiros convidados a visitar a Coreia do Norte veem os impressionantes projetos de construção na capital, mas no resto do país a vida é muito diferente, dizem visitantes regulares.

"Serão as pessoas mais vulneráveis, as pessoas de fora de Pyongyang, que sofrerão", disse Kee Park, neurocirurgião norte-americano que faz cirurgias na Coreia do Norte.

As sanções aos setores de pesca, roupas e carvão, somadas à decisão sul-coreana de fechar um complexo fabril operado pelos dois países que empregava mais de 50 mil norte-coreanos, privarão muita gente de sua renda em uma economia que cada vez mais se aproxima de uma economia de mercado, disse Park.

"As sanções são concebidas para machucar, e com isso levar o governo a mudar suas políticas", ele disse. "Mas elas estão machucando as pessoas erradas".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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