Folha de S. Paulo


Consumismo amortece críticas por cerco a liberdades na China

Damir Sagolj/Reuters
Funcionários de loja da Apple em Pequim, na China, comemoram a compra dos primeiros iPhone 6s, na manhã desta sexta-feira
Funcionários de loja da Apple em Pequim, na China, comemoram a compra dos primeiros iPhones

O brilho elétrico dos anúncios nos telões se multiplica em anéis e correntes de ouro usadas aos montes por garotos e garotas carregados de sacolas de grife que abarrotam o Taikoo Li Sanlitun, um shopping de luxo em Pequim.

Num fim de semana recente, nem as temperaturas abaixo de zero do outono da capital chinesa esvaziavam as galerias de compras a céu aberto que rodeiam uma loja da Apple transbordando de gente. Em volta dela, vitrines gritam Balmain, Alexander McQueen, Versace, Lanvin, Moschino e outros nomes que já nem precisam de tradução.

Mulheres de casaco de pele e minissaia e rapazes que parecem saídos de clipes de rap fazem compras escaneando códigos na tela de seus iPhones X aberta no WeChat, o substituto local para quase todas as redes sociais do Ocidente, que são proibidas pelo governo da China.

O "bling", ou ostentação desmedida, dos chineses pode parecer frívolo e inconsequente como seus parentes do outro lado do planeta, com a diferença que na maior potência asiática esse consumismo desenfreado amortece grande parte das queixas contra a onda ultraconservadora que vem fechando o cerco à liberdade de expressão.

No início do ano, o Partido Comunista, que controla o país, lançou uma cartilha de censura enumerando 68 coisas que se tornariam então indizíveis e invisíveis na internet –imagens de menores bebendo, gente vestindo trajes sumários e casais homossexuais foram todas banidas.

Sátiras a lideranças religiosas e a crenças espirituais também estão entre os vetos.

O esforço faz parte dos planos de Xi Jinping, secretário-geral do partido e líder do país, de controlar não só a visão política dos chineses mas também fazer uma defesa da moral e dos bons costumes, manobra que trouxe lembranças de Mao Tsé-Tung e de sua Revolução Cultural de cinco décadas atrás.

Quando assumiu o poder há cinco anos, Xi liderou uma espécie de Lava Jato chinesa,expurgando políticos corruptos do alto escalão do governo. A censura, agora bem mais reforçada, veio na sequência como sinal do que muitos aqui veem como nova era.

"Existe uma nova China, estamos num momento especial. Xi criou políticas para a vida normal, e as pessoas são gratas a ele", dizia uma jovem diplomata, que não quis revelar seu nome, enquanto tomava café num dos muitos Starbucks que se espalham por Pequim. "Essas medidas são as mais certas e apropriadas para nossas vidas agora."

Seu colega na chancelaria chinesa, um rapaz que também preferiu não ser identificado por receio de ser punido por seus superiores, tentou explicar como uma postura zero politizada acabou virando o modo de vida aqui.

"Liberdade é importante, mas segurança é mais importante do que qualquer suposta liberdade", diz ele. "Mesmo que haja restrições significativas à internet, não vejo isso como barreira às nossas vidas. A política não é tão importante para nós. Usamos a internet para ver novelas e filmes. Isso basta para a gente."

COSTUMES
Nesse ponto, eles ressaltam um grande contraste entre Xi e líderes anteriores, os principais artífices do vertiginoso crescimento que varreu a China nas últimas décadas.

Enquanto eles, que transformaram o país em superpotência, eram vistos como tecnocratas preocupados com a economia, o atual líder alçou o campo dos costumes ao primeiro plano enquanto trabalha para manter o alto padrão de vida para certas parcelas da população, evitando que a pujança da China murche e abale o poder de seu regime.

Sentada entre sacolas à mesa de um café do Taikoo Li Sanlitun, o shopping de luxo, uma instrumentista clássica, que se identificou só como Yvonne, é um exemplo desses chineses abastados que viram na era Xi um equilíbrio entre o retorno à tradição e a manutenção do consumismo que torna mais tolerável a vida na China atual.

"Xi é um grande intelectual, alguém que quer desenvolver a cultura", dizia a jovem, que estudou num conservatório em Londres. "A China é um país livre e está muito melhor agora do que estava antes. Tem uma cultura riquíssima, e nós devemos buscar a raiz dessa cultura."

Phoebe Huang, jovem executiva que trabalha numa agência de marketing em Pequim, também vê com bons olhos esse momento chinês.

"Gosto da minha vida. É verdade que não podemos dizer o que pensamos e fazer o que quisermos por medo de ir para a cadeia. Mas não posso lutar por todos", dizia ela, num bar da cidade. "Se você não gosta da vida aqui, pode se mudar para outro lugar."

Mesmo os que gostam da vida na capital, no entanto, vêm sendo expulsos contra sua vontade. Depois da cruzada conservadora liderada por Xi, Pequim vem arrasando bairros periféricos inteiros no afã de enxotar da metrópole migrantes internos, numa tentativa de limitar a população da cidade com 21,5 milhões de moradores.

Su Qing, uma guia turística que esperava o primeiro cliente do dia na entrada da Cidade Proibida, no coração de Pequim, não chegou a ter sua casa demolida, como acontece com muitos que tentaram sem sucesso a vida na capital, mas reclama que os preços dos aluguéis estão cada vez mais difíceis de pagar.

"O único problema é que as coisas estão se tornando mais caras", dizia ela. "Não é a política que faz diferença."

Essa apreensão também acendeu um alerta entre os estrangeiros que se mudaram para a China numa época de abertura que parece agora caminhar para um triste final.

John Anderson, um canadense há quase três anos na cidade, conta que se tornaram mais comuns invasões da polícia a bares e boates da cidade, onde obrigam clientes a fazer um teste de urina para detectar o uso de drogas.

"É um esforço para normalizar e desinfetar a cidade", diz o executivo de marketing. "Eles são menos amigáveis com estrangeiros. Querem criar uma sensação de instabilidade para nós aqui. Estamos vivendo tempos sensíveis, em que já ficou tarde demais para criar esperanças."


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