Folha de S. Paulo


Trump duvida de inteligência e busca aproximação com Putin

Nos dias que antecederam a posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, seus assessores mais próximos pediram que ele reconhecesse publicamente o que os serviços de inteligência norte-americanos já haviam concluído: que a interferência russa na eleição de 2016 havia sido real.

No escritório de Trump, no 26º andar da Trump Tower, assessores –como seu genro, Jared Kushner, e o futuro chefe de gabinete presidencial Reince Priebus– realizaram uma série de intervenções improvisadas, para tentar convencer o presidente eleito a aceitar a conclusão de que os chefes dos serviços de espionagem norte-americanos haviam apresentado pessoalmente a ele no dia 6 de janeiro.

Os assessores tentaram convencer Trump de que seria possível confirmar a validade das informações sem com isso diminuir sua vitória eleitoral, de acordo com três pessoas que participaram dessas conversas. O mais importante é que eles disseram que fazê-lo seria a única maneira de deixar o assunto para trás politicamente, e de libertar Trump para que ele pudesse buscar seu objetivo, o de estreitar o relacionamento entre os Estados Unidos e o presidente russo Vladimir Putin.

"Aquilo era parte do processo de normalização", disse um participante. "Houve um grande esforço para fazer dele um presidente convencional."

Mas a persistência dos assessores incomodou Trump. Ele ralhou com eles, afirmando que as informações não mereciam confiança, e resmungava diante de qualquer insinuação de que sua candidatura havia sido propelida por qualquer outra coisa que não sua estratégia, mensagem e carisma.

Informado de que integrantes de seu futuro gabinete já haviam expressado apoio público às conclusões do relatório dos serviços de inteligência sobre a Rússia, Trump respondeu: "E daí?" Admitir que o Kremlin havia ordenado o hacking de e-mails do Partido Democrata era "uma armadilha", ele disse.

Quando Trump falou com jornalistas no saguão da Trump Tower, em 11 de janeiro, ele chegou perto de admitir o fato, ainda que com relutância. "No que tange ao hacking, acho que foi a Rússia", ele declarou, acrescentando que "também somos alvo de hacking por outros países e outras pessoas".

Ainda que sua admissão contivesse ressalvas, Trump se arrependeu dela quase de imediato. "Não é assim que eu ajo", ele disse a assessores depois da conversa com jornalistas. "Não foi a coisa certa a fazer".

Passado quase um ano de sua posse, Trump continua a rejeitar as provas de que a Rússia desferiu um ataque contra um dos pilares da democracia norte-americana, e de que sua campanha para chegar à Casa Branca foi beneficiada por isso.

O resultado não tem paralelos evidentes na história do país: uma situação na qual as inseguranças pessoais do presidente –e sua recusa em aceitar o que muitos membros de sua administração reconhecem como realidade objetiva– prejudicaram a resposta do governo a uma ameaça de segurança nacional. E as repercussões afetam o governo todo.

Em lugar de buscar maneiras de bloquear os ataques do Kremlin ou salvaguardar as eleições norte-americanas, Trump vem travando uma campanha pessoal para desacreditar o argumento de que a Rússia representa uma ameaça de qualquer espécie, e vem resistindo a, ou tentando repelir, quaisquer esforços para responsabilizar Moscou pelo que fez.

O governo de Trump agiu para retirar pelo menos algumas das sanções impostas à Rússia pelo governo anterior, por conta de sua interferência eleitoral, e estuda a restituição de dois imóveis russos nos Estados Unidos cujo confisco foi ordenado pelo presidente Barack Obama –a medida punitiva que mais irritou Moscou. Alguns meses mais tarde, quando o Congresso decidiu impor penalidades adicionais aos russos, Trump combateu as propostas ferozmente.

Agentes de inteligência que prestam informações ao presidente minimizam as informações sobre a Rússia por medo de desagradá-lo, dizem antigos e atuais funcionários do governo. Os planos do Departamento de Estado para combater a propaganda russa continuam travados. E embora Trump tenha formado uma comissão para investigar afirmações completamente desacreditadas de que houve fraude eleitoral no pleito do ano passado, não existe uma força-tarefa cujo foco seja o perigo eleitoral que muitas autoridades da área de segurança encaram como certeza –o de futuros ataques russos.

Trump jamais convocou uma reunião de gabinete sobre a interferência russa ou o que fazer quanto a isso, disseram integrantes de seu governo. Embora a questão tenha sido debatida nos escalões mais baixos do Conselho de Segurança Nacional, um antigo funcionário de primeiro escalão do governo Trump disse que havia, dentro do conselho, um entendimento implícito de que mencioná-la significa reconhecer sua validade, o que o presidente veria como afronta.

A posição de Trump sobre a eleição é parte de um envolvimento mais amplo com Moscou que definiu o primeiro ano de sua presidência. Ele continua a buscar uma conexão intangível com Putin, o que Trump entende como essencial para lidar com a Coreia do Norte, Irã e outras questões. "Ter a Rússia em postura amistosa", ele declarou no mês passado, "é um ativo para o planeta e um ativo para o nosso país".

A posição que ele adotou alienou alguns dos aliados mais próximos dos Estados Unidos e em muitos casos solapou os esforços de membros de seu gabinete -e tudo isso diante do pano de fundo de um inquérito criminal sobre a possível conexão entre a campanha de Trump e o Kremlin.

Esse relato da reação do governo Trump às interferências russas, e de suas políticas com relação a Moscou, se baseia em entrevistas com mais de 50 antigos e atuais funcionários do governo dos Estados Unidos, muitos dos quais tiveram papéis importantes na campanha de Trump ou em sua equipe de transição, ou ocuparam postos importantes na Casa Branca ou nas agências de segurança nacional. Eles concordaram em falar sob a condição de que seus nomes não fossem mencionado, por entenderem o assunto como delicado.

Integrantes do governo Trump defenderam a abordagem adotada com relação à Rússia, insistindo em que as políticas e ações que a administração dele adotou foram mais duras que as de Obama, mas sem a retórica ou postura desnecessariamente belicosas. "Nossa abordagem é não irritar a Rússia; nós buscamos conter a Rússia", disse um importante funcionário do governo. "O governo anterior fazia exatamente o oposto do necessário".

Os funcionários da Casa Branca retratam a recusa do presidente de reconhecer a interferência russa na eleição como reação humana compreensível. "O presidente obviamente sente... que a ideia de que foi colocado no posto por Vladimir Putin é muito insultuosa", disse um segundo funcionário importante do governo. Mas as opiniões dele "não restringem" a capacidade do governo para reagir a futuras ameaças às eleições, disse o funcionário. "Nossa primeira ordem ao lidar com a Rússia é tentar combater muitas das atividades desestabilizadoras em que a Rússia se engaja".

Outras pessoas questionaram de que maneira um esforço como esse poderia encontrar sucesso quando o presidente rejeita constantemente a base racional para a busca desse objetivo. Michael Hayden, que foi diretor da Agência Central de Inteligência (CIA) norte-americana no governo de George W. Bush, descreveu a interferência russa como o equivalente dos ataques de 11 de setembro de 2001, um evento que expôs uma vulnerabilidade antes não percebida, e que requer uma resposta unificada da parte dos norte-americanos.

"O que o presidente teria de dizer é que sabemos que a Rússia fez o que fez, eles sabem o que fizeram, eu sei o que eles fizeram, e não descansaremos até descobrir tudo que se possa saber a respeito, e até que façamos todo o possível para impedir que isso aconteça de novo", disse Hayden em entrevista. Trump "jamais disse algo nem próximo disso, e jamais dirá algo nem próximo disso".

RESPOSTA FRÁGIL

A resposta frágil dos Estados Unidos foi percebida pelo Kremlin.

Autoridades dos Estados Unidos dizem que uma série de fontes de inteligência dentro do governo russo indicam que Putin e seus assessores consideram a campanha de "medidas ativas" de 2016 –o termo que os russos empregam para designar essas operações clandestinas de propaganda– como um sucesso retumbante, ainda que incompleto.

Moscou não atingiu alguns de seus objetivos mais estreitos e imediatos. A anexação da Crimeia, antes parte da Ucrânia, não foi reconhecida. As sanções impostas pela intervenção russa na Ucrânia continuam em vigor. O Congresso norte-americano decidiu impor penalidades adicionais. E uma onda de retaliação diplomática custou aos russos o acesso a outras de suas instalações diplomáticas nos Estados Unidos, entre as quais o consulado do país em San Francisco.

Mas no geral, dizem norte-americanos informados sobre a questão, o Kremlin obteve retornos excepcionais de uma operação cuja execução, de acordo com algumas estimativas, custou menos de US$ 500 mil, e foi organizada em torno de dois objetivos principais: desestabilizar a democracia dos Estados Unidos e impedir que Hillary Clinton, a quem Putin despreza, chegasse à Casa Branca.

Para Putin, disse um funcionário norte-americano inteirado sobre as informações que surgiram depois da eleição, o resumo é que a operação "mais que valeu o esforço".

A operação russa parecia ter por objetivo agravar a polarização e as tensões raciais e diminuir a influência dos Estados Unidos no exterior. As alianças mais importantes dos Estados Unidos se fragilizaram, e o Gabinete Oval está ocupado por um político desordenador, que costuma elogiar seu colega russo.

"Putin com certeza deve acreditar que essa foi a operação de inteligência, mais bem sucedida da história russa ou soviética", disse Andrew Weiss, antigo assessor dos governos George Bush pai e Bill Clinton sobre questões russas e agora pesquisador no Carnegie Endowment for International Peace. "Ela causou uma crise que durará anos, no sistema político dos Estados Unidos."

As autoridades norte-americanas entrevistadas se recusam a revelar se as informações recentes sobre a Rússia foram transmitidas a Trump. Atuais e antigos integrantes de seu governo dizem que o relatório de inteligência diário que ele recebe –conhecido como "president's daily brief", ou PDB– muitas vezes é estruturado de maneira a evitar irritá-lo.

Informações relacionadas à Rússia que podem despertar a ira do presidente em alguns casos são incluídas apenas na avaliação escrita, e não são mencionadas na versão oral do briefing, disse um antigo funcionário dos serviços de inteligência que conhece o procedimento. Em outros casos, o principal encarregado do briefing de Trump –um veterano analista de inteligência da CIA– ajusta a ordem e texto de sua apresentação, de forma a atenuar o impacto.

"Se você fala sobre a Rússia, interferência, manipulação –isso tira o PDB dos trilhos", disse um segundo funcionário importante dos serviços de inteligência norte-americanos.

Brian Hale, porta-voz do Escritório do Diretor Nacional de Inteligência, disse que o briefing é "escrito por agentes de inteligência de carreira, com postos elevados", e que os serviços de inteligência "sempre oferecem informações objetivas ao presidente e sua equipe –o que inclui informações sobre a Rússia".

A aversão de Trump às informações sobre a interferência russa, e o dilema que isso gera para os principais espiões norte-americanos, criou uma dissonância confusa nas questões relacionadas à Rússia. A CIA continua a manter suas conclusões com respeito à eleição, por exemplo, ainda que o diretor da agência, Mike Pompeo, frequentemente faça comentários que minimizam ou distorcem essas conclusões.

Em outubro, Pompeo declarou que os serviços de inteligência haviam concluído que a interferência russa "não afetou o resultado da eleição". Na verdade, os serviços de inteligência evitaram propositadamente tratar dessa questão.

Em 6 de janeiro, duas semanas antes da posse de Trump como presidente, os principais líderes dos serviços de inteligência norte-americanos embarcaram em um avião na base Andrews, perto de Washington, para uma viagem a Nova York na qual apresentariam um dos briefings mais delicados de carreiras que já duravam décadas.

O diretor de inteligência nacional, James Clapper; o diretor da CIA, John Brennan; e o diretor da Agência de Segurança Nacional (NSA), Michael Rogers, viajaram juntos em um Boeing 737 da força aérea. James Comey, o diretor do Serviço Federal de Investigações (FBI), fez a viagem separadamente, em um jatinho Gulfstream do FBI, porque planejava ficar mais tempo na cidade para um encontro com dirigentes de seu serviço.

O clima era pesado. Os quatro homens haviam realizado uma reunião virtual na noite anterior, usando um circuito seguro de videoconferência para planejar como apresentar ao futuro presidente um relatório confidencial sobre a interferência da Rússia na eleição, e seu objetivo de favorecer Trump.

Durante a campanha, Trump oscilou entre descartar a ideia de envolvimento russo –dizendo que a invasão dos computadores do Comitê Nacional Democrata era obra de "alguém que não consegue levantar da cama e pesa 180 quilos"– e estimular o Kremlin a redobrar seus esforços e descobrir novos e-mails de Hillary Clinton.

Os dirigentes dos serviços de segurança já haviam informado o presidente Obama e membros do Congresso a respeito. A caminho da reunião, cruzando Manhattan em comboios separados de utilitários esportivos pretos, a expectativa deles era a de uma explosão.

"Estávamos preparados para uma expulsão", disse Clapper em entrevista.

Mas a conversa foi estranhamente serena.

Os líderes dos serviços de segurança foram conduzidos a uma espaçosa sala de reunião no 14º andar da Trump Tower. Trump se sentou à cabeceira da longa mesa, e o vice-presidente eleito Mike Pence ocupou a cabeceira oposta. Entre os demais presentes estavam Priebus, Pompeo e Michael Flynn, selecionado por Trump como seu assessor de segurança nacional.

Seguindo o plano ensaiado, Clapper serviu de moderador, cedendo o lugar a Brennan e aos demais em momentos cruciais do briefing, que cobria as informações mais confidenciais obtidas pelas agências de espionagem dos Estados Unidos, entre as quais uma fonte de informações extraordinária que a CIA desenvolveu e que havia capturado instruções específicas de Putin sobre a operação.

Trump pareceu aceitar as informações, pelo menos naquele momento.

"Ele foi afável, cortês, elogioso", disse Clapper. "Não falou do cara de 180 quilos."

Uma cópia do relatório foi entregue ao agente encarregado dos briefings de inteligência de Trump. Mas ainda restava uma questão cobrir, mais delicada.

Clapper e Comey inicialmente haviam planejado continuar a conversa com Trump para informá-lo sobre um infame dossiê que incluía afirmações lúbricas sobre o presidente eleito.

O dossiê foi encomendado por uma empresa de pesquisa que servia aos oponentes político dele em Washington, e que contratou um antigo agente dos serviços de inteligência britânicos para obter material. Como reportou o "Washington Post" em outubro, a pesquisa foi paga pela organização de campanha de Hillary Clinton e pelo Comitê Nacional Democrata.

Mas Comey decidiu, por fim, que deveria tratar do assunto com Trump sozinho, afirmando que o FBI era exclusivamente responsável por esquadrinhar o dossiê. Depois que as demais pessoas deixaram a sala, Comey explicou que o dossiê não havia sido corroborado e que seu conteúdo não havia influenciado as constatações dos serviços de inteligência - mas que o presidente eleito precisava saber que as informações do dossiê estavam circulando amplamente em Washington.

Alguns funcionários importantes subsequentemente indagariam se a decisão de deixar aquela conversa para Comey não ajudou a envenenar seu relacionamento com o novo presidente. Quando o dossiê foi postado online quatro dias mais tarde pelo site de noticias BuzzFeed, Trump rebateu na madrugada seguinte, com uma explosão postada no Twitter às 4h48min.

"Os serviços de inteligência jamais deveriam ter permitido que essa notícia falsa 'vazasse' para o público", Trump afirmou. "Um último ataque contra mim. Estamos vivendo na Alemanha nazista?" O "Washington Post" estava entre as diversas organizações noticiosas que haviam recebido o dossiê, meses antes, vinha tentando verificar as afirmações que ele continha, e escolheu não publicá-lo.

Depois de concluir a reunião com Trump em 6 de janeiro, Comey entrou no seu carro e começou a preparar um memorando.

"Eu sabia que chegaria o dia em que precisaria de um registro sobre o que aconteceu, não só para me defender mas para defender o FBI e nossa integridade como instituição", ele depôs ao Congresso em junho. Foi o primeiro dos muitos memorandos que Comey escreveria para detalhar suas interações com Trump.

O escritório de Clapper publicou uma versão pública abreviada do relatório de inteligência, no mesmo dia. Trump divulgou um comunicado no qual afirmava que "Rússia, China" e "outros países" buscaram penetrar as defesas cibernéticas de instituições dos Estados Unidos, entre as quais o Comitê Nacional Democrata.

Em suas intervenções na Trump Tower, os assessores de Trump buscaram cimentar a aparente aceitação das informações, pelo futuro presidente. Mas à medida que seu primeiro ano de mandato avançava, Trump foi se tornando cada vez mais veemente em sua rejeição ao relatório.

Em novembro, durante uma visita de 12 dias à Ásia, Trump sinalizou que acreditava mais na palavra de Putin do que nos serviços de inteligência dos Estados Unidos.

"Ele disse que não interferiu", afirmou Trump a repórteres a bordo do avião presidencial, depois que ele e Putin conversaram em particular durante uma conferência de cúpula no Vietnã. "Sempre que nos encontramos, ele me diz que não fez aquilo, e fica claro que está dizendo a verdade".

As declarações causaram alarde em Washington, e Trump buscou acalmar a controvérsia sem admitir plenamente que as informações sobre a Rússia eram acuradas. Ele também desferiu um golpe final contra os chefes dos serviços de inteligência que o visitaram em Nova York em janeiro.

"Quanto a determinar se acredito ou não", ele disse no dia seguinte, "confio em nossas agências, especialmente na forma atual com que sua liderança está constituída".

AFINIDADE

Nos dias iniciais de sua presidência, Trump se cercou de assessores e conselheiros que reforçavam sua afinidade para com a Rússia e Putin, ainda que por motivos díspares, nem sempre conectados às opiniões do presidente.

Flynn, seu assessor de segurança nacional, via a Rússia como uma potência mundial injustamente criticada, e acreditava que os Estados Unidos deveriam deixar de lado suas diferenças com Moscou para que os dois países pudessem se concentrar em prioridades mais elevadas, como o combate ao terrorismo islâmico.

Alguns membros do Conselho de Segurança Nacional, entre os quais Derek Harvey, assessor para questões do Oriente Médio, instavam pela busca de uma "grande negociação" com a Rússia sobre a Síria, como parte de um esforço para afastar Moscou do Irã. Harvey já não é parte do governo.

Outros tinham impulsos mais idiossincráticos. Kevin Harrington, um antigo associado do bilionário da computação Peter Thiel conduzido ao governo para ajudar a formular uma estratégia de segurança nacional, via elos estreitos com a Rússia, rica em petróleo e gás natural, como cruciais para que os Estados Unidos sobrevivessem a um apocalipse energético - uma situação que pessoas que trabalharam com ele dizem que Harrington debatia frequentemente e descrevia como inevitável.

As inclinações da equipe de assessores e Trump começaram a mudar quando Flynn se viu forçado a renunciar depois de apenas 24 dias no posto, por ter mentido sobre suas conversações com o embaixador russo. Seu substituto, o general H. R. McMaster, do exército, tinha posições mais convencionais sobre política externa, o que inclui uma visão muito mais cética quanto a Moscou.

A mudança ajudou a aliviar a inquietação que vinha caracterizando o Conselho de Segurança Nacional mas criou conflitos sobre questões relacionadas à Rússia que pareciam interferir com a busca por Trump de uma amizade com Putin. Entre elas estava a posição do governo norte-americano sobre a Otan (Organização para o Tratado do Atlântico Norte).

A aliança, construída em torno de uma promessa de defesa mútua contra a agressão soviética ou russa, por parte dos Estados Unidos e de seus aliados europeus, se tornou causa de conflagração nas batalhas internas da Casa Branca. McMaster, defensor ardoroso da Otan, enfrentava dificuldades para resistir aos ataques contra a aliança e seus integrantes vindos dos assessores políticos de Trump.

Steve Bannon, estrategista chefe do presidente, começou a agir para solapar o apoio à Otan semanas depois de chegar à Casa Branca. Depois de conseguir um assento no Conselho de Segurança Nacional, Bannon instruiu subordinados a compilarem uma tabela de atrasados - gastos com a defesa previstos mas não realizados, para todos os membros da Otan, desde a criação da organização, 67 anos atrás. Os subordinados protestaram que não havia modo prático de realizar esse cálculo, e persuadiram Bannon a aceitar uma lista parcial formada por compromissos de gastos não cumpridos a partir de 2007.

Bannon e McMaster brigaram na frente de Trump durante uma reunião sobre a Otan no Gabinete Oval, no segundo trimestre, disseram participantes. Trump, que estava sentado à sua mesa, expressou frustração por os países membros da Otan não estarem cumprindo seus compromissos de gastos com a defesa, especificados em tratado. Bannon foi além, descrevendo a Europa como "nada mais que um protetorado glorificado".

McMaster, defensor ferrenho da Otan, respondeu agressivamente a Bannon. "Por que você defende tanto a Rússia?", ele questionou, de acordo com dois funcionários informados sobre a reunião. Bannon respondeu afirmando que sua posição "nada tinha a ver com os russos", e mais tarde contou a colegas que adorava esses confrontos com McMaster, afirmando que "adoro morar nos pensamentos dele sem pagar aluguel".

Bannon e seus aliados também manobraram para sabotar momentos em que a aliança pretendia demonstrar sua união. Quando o secretário geral da Otan, Jens Stoltenberg, chegou para uma visita à Casa Branca, em abril, a equipe de McMaster preparou para Trump declarações que incluíam um endosso ao Artigo 5 –a cláusula essencial da Otan, que dispõe que os países membros ajam em defesa mútua.

Mas a menção foi removida do texto no último minuto pelos inimigos da Otan dentro do governo, que argumentaram que as declarações "não pareciam presidenciais o bastante", de acordo com um funcionário norte-americano de primeiro escalão. Um mês mais tarde, Stephen Miller, assessor da Casa Branca próximo a Bannon, realizou uma operação de revisão semelhante em Bruxelas, quando Trump discursou na cerimônia de inauguração do novo e reluzente quartel-general da Otan.

Diante de destroços de aço retorcidos do World Trade Center, que servem de monumento ao compromisso cumprido pela Otan de defender os Estados Unidos, depois dos ataques do 11 de setembro, Trump não fez menção alguma ao compromisso norte-americano para com o princípio da defesa mútua.

O presidente norte-americano terminou por fazê-lo em junho, durante uma visita do presidente da Romênia. Funcionários do governo norte-americano disseram que, naquela ocasião, McMaster se manteve ao lado de presidente até que começasse a entrevista coletiva que ele daria em companhia do colega romeno, impedindo Miller de se aproximar de Trump e do texto. Um assessor sênior da Casa Branca disse que Trump desenvolveu um bom relacionamento com Stoltenberg e frequentemente o elogia, em conversas privadas.

Quanto a assuntos delicados que envolvam a Rússia, os principais assessores do presidente adotam às vezes uma política que um funcionário descreve como "não entre no escritório" - ou seja, eles evitam ir ao Gabinete Oval e dar a Trump a chance de explodir ou reverter decisões sobre assuntos que podem ser resolvidos por subordinados.

Outro antigo integrante do governo norte-americano descreve que foi encarregado de contatar o governo alemão antes da visita da chanceler [primeira-ministra] alemã Angela Merkel à Casa Branca, em março. A missão era dupla, ele disse: avisar Merkel de que seu encontro com Trump provavelmente seria acrimonioso, devido às divergências em suas posições quanto a refugiados, comércio internacional e outras questões, mas também para instá-la a pressionar Trump quanto ao apoio norte-americano à Otan.

O momento marcante da visita aconteceu quando os dois posaram brevemente para os fotógrafos. Trump estava carrancudo e pareceu ter rejeitado o esforço de Merkel para apertar sua mão, embora o presidente norte-americano tenha declarado mais tarde que não percebeu o gesto.

A expressão de seu rosto nas fotos ao lado da líder alemã contrastava fortemente com a que Trump costuma exibir em encontros com Putin e outros líderes autoritários. "Quem são os três caras que ele mais admira no mundo? O presidente Xi [Jinping], da China, [o presidente turco Recep Tayyip] Erdogan e Putin", disse um assessor de Trump. "E eles são basicamente o mesmo cara".

Merkel jamais se enquadraria no panteão de Trump. Antes de sua chegada, funcionários da Casa Branca presenciaram uma cena estranha, que muitos entenderam como augúrio sobre a visita. McMaster e uma dúzia de outros assessores importantes estavam reunidos com Trump no Gabinete Oval para delinear as questões que Merkel provavelmente traria, mas o presidente perdeu a paciência, se levantou e foi ao banheiro.

Trump deixou a porta do banheiro aberta, de acordo com pessoas informadas sobre o incidente, e instruiu McMaster a erguer a voz e continuar falando. Um importante funcionário da Casa Branca disse que o presidente entrou no banheiro e se "se limitou a se olhar no espelho, como faria antes de um evento público".

McMaster ganhou um aliado interno quanto à Rússia em março, quando Fiona Hill foi contratada como principal assessora do Conselho de Segurança Nacional para questões russas. Crítica frequente do Kremlin, Hill era mais conhecida como autora de uma respeitada biografia de Putin, e foi vista como escolha reconfortante, pelos integrantes da linha dura quanto aos russos.

Mas o relacionamento dela com Trump foi complicado desde o começo.

Em um de seus primeiros encontros com o presidente, no Gabinete Oval, a fim de prepará-lo para uma conversa telefônica com Putin sobre a Síria, Trump ao que parece a confundiu com uma das secretárias da Casa Branca, e lhe entregou um memorando que havia anotado, pedindo que Hill o reescrevesse.

Quando Hill respondeu com um olhar de perplexidade, Trump se irritou com aquilo que entendeu como insubordinação, de acordo com pessoas que testemunharam o momento. Hill saiu da sala confusa, e Trump explodiu e pediu com um gesto a intervenção de McMaster.

McMaster saiu da sala atrás de Hill, e a repreendeu, disseram testemunhas. Mais tarde, ele e alguns colegas próximos organizaram uma reunião para reparar o relacionamento desgastado entre Hill e o presidente.

A posição de Hill sofreu novo abalo quando ela se viu forçada a defender membros de sua equipe suspeitos de deslealdade, depois que detalhes sobre uma reunião entre Trump e o ministro do exterior russo Sergey Lavrov e o embaixador russo Sergey Kislyak vazaram para o "Washington Post". Na reunião, Trump revelou informações altamente confidenciais aos convidados russos.

A Casa Branca depois disso restringiu ainda mais o número de assessores envolvidos em reuniões com representantes da Rússia. Trump foi acompanhado apenas pelo secretário de Estado Rex Tillerson a uma reunião com Putin durante a conferência de cúpula do Grupo dos 20 (G20) em Hamburgo, em julho. Em governos anteriores, o principal assessor do presidente sobre questões russas tipicamente participaria desse tipo de encontro, mas Hill se viu excluída dessas ocasiões frequentemente.

Um importante funcionário do governo disse que o Conselho de Segurança Nacional "não foi excluído" por conta das dificuldades no contato entre Trump e Hill, que ela participa regularmente de briefings ao presidente, e que Hill e sua equipe "continuam a desempenhar papel importante na política quanto à Rússia".

POSIÇÃO MAIS DURA

Representantes da Casa Branca insistiram em que o governo Trump adotou posição mais dura quanto a Moscou do que o governo Obama, em diversos aspectos importantes.

Apontam para a decisão de Trump de aprovar um ataque militar dos Estados Unidos contra a Síria, depois de um ataque sírio com armas químicas contra os rebeldes do país. O alvo do ataque norte-americano foi uma base militar na qual havia pessoal e equipamento russos. Também mencionam a decisão de Trump de assinar uma lei que impõe novas sanções econômicas a Moscou, em agosto, e as medidas do Departamento de Estado no final daquele mês ordenando o fechamento de três instalações diplomáticas russas - dois escritórios comerciais e o consulado do país em San Francisco. Eles também disseram que o Conselho de Segurança Nacional está preparando opções para que o presidente tenha como enfrentar a ameaça de interferência russa nas eleições norte-americanas.

"Observe nossas ações", disse um membro importante do governo, em entrevista. "Estamos reagindo às ações russas".

Mas integrantes importantes do governo Trump encontram dificuldade em explicar exatamente de que maneira o fazem. Em depoimento ao Congresso em outubro, o secretário da Justiça Jeff Sessions foi pressionado a responder se o governo havia feito o suficiente para impedir futuras interferências russas. "Provavelmente não", ele declarou. "E a questão é tão complexa que a maioria de nós não é capaz de compreender plenamente os perigos técnicos que existem."

As ações efetivas do governo quanto à Rússia terminam contrabalançadas por outros fatores. Além disso, Trump tinha pouca escolha a não ser assinar as novas sanções contra a Rússia, e não faltam exemplos de ações no sentido contrário. Entre elas está o persistente interesse do governo em propostas de suspensão de uma das penalidades mais efetivas que Obama impôs à Rússia por sua interferência eleitoral - o confisco de duas grandes propriedades.

A Rússia usava esses vastos imóveis em Maryland e Nova York como locais de lazer para seus espiões e diplomatas mas também –de acordo com agentes da CIA e do FBI– como plataformas para espionagem. A perda das duas propriedades se tornou uma das grandes queixas de Moscou.

Lavrov mencionou o confisco das duas propriedades em quase todas as suas reuniões com colegas norte-americanos, acusando os Estados Unidos de "roubarem nossas dachas" –o termo russo para casas de campo.

Putin talvez tivesse motivo para esperar que a Rússia em breve pudesse retomar o controle das duas propriedades, quando Trump assumiu. Em seu recente acordo de leniência, Flynn admitiu ter mentido ao FBI sobre uma conversa com o embaixador russo no final de dezembro. Durante o telefonema, que aconteceu no momento em que Obama estava anunciando sanções contra a Rússia, Flynn instou o embaixador a não exagerar em sua reação, porque a medida não duraria muito.

Depois de uma reportagem publicada pelo "Washington Post" no final de maio sobre o interesse do governo Trump em devolver as propriedades aos russos, a linha dura do governo se mobilizou para evitar qualquer oferta de restituição.

Diversas semanas mais tarde, o FBI apresentou um briefing complexo a Trump no Gabinete Oval, segundo pessoas informadas sobre a ocasião. E. W. Pristap, diretor assistente da divisão de combate a serviços estrangeiros de inteligência do FBI, levou maquetes das propriedades e mapas que mostravam sua proximidade com instalações militares e de inteligência sigilosas.

Apelando ao impulso de Trump de colocar os Estados Unidos acima de tudo, os representantes do FBI expressaram sua convicção de que os russos haviam usado os imóveis para roubar segredos norte-americanos. Trump pareceu acreditar na informação, disseram pessoas informadas sobre a ocasião.

"Eu disse a Rex que não devolveríamos os imóveis aos russos", disse Trump em dado momento, segundo os participantes, se referindo a Tillerson. Posteriormente, Trump se maravilhou com o potencial das duas propriedades, e perguntou: "Será que não deveríamos vendê-las e ficar com o dinheiro?"

Mas em 6 de julho Tillerman enviou uma mensagem informal ao Kremlin propondo o retorno das duas propriedades, um gesto que ele esperava ajudasse os dois lados a reparar os estragos em seu relacionamento. Sob os termos propostos, a Rússia poderia retomar as propriedades, mas elas não seriam consideradas como instalações diplomáticas, o que por anos as protegeu contra ações dos serviços de segurança e policiais norte-americanos.

O FBI e alguns funcionários da Casa Branca ficaram atônitos ao descobrir que o plano havia sido comunicado aos russos por uma mensagem informal, em formato que não implica em compromisso rígido. Mas "Tillerson não faz coisa alguma sem aprovação de Trump", disse um importante funcionário norte-americano, deixando claro que o presidente havia sido informado com antecedência.

Funcionários do governo ofereceram relatos conflitantes sobre o que aconteceu em seguida. Dois deles deram a entender que houve comunicação adicional com o Kremlin sobre o plano. Um funcionário de primeiro escalão disse que Tillerson alterou os termos no último minuto, propondo que a propriedade de Maryland fosse devolvida "status quo ante", ou seja, com plena proteção diplomática. Uma vez mais, as agências policiais e de inteligência norte-americanas, incluindo o FBI, estariam proibidas de entrar na propriedade.

Funcionários do Departamento de Estado contestam esse relato, no entanto, afirmando que nenhuma oferta nesse sentido foi contemplada e que a proposta final encaminhada ao Kremlin foi a mensagem informal de 6 de julho –um dia antes do encontro de Trump com Putin em Hamburgo.

Tillerson "jamais instruiu qualquer pessoa a preparar" uma proposta revisada para o Kremlin, disse Heather Nauert, porta-voz do Departamento de Estado, em declaração escrita. "Consideramos possibilidades para a restauração do acesso russo, com fim recreativo, de forma que levasse em conta as preocupações de segurança do governo dos Estados Unidos". Pelo final de julho, o Congresso havia aprovado um novo projeto de lei de sanções que "impunha condições específicas para a restituição das dachas", ela disse, "e os russos até agora não se dispuseram a cumpri-las".

Moscou deixou claro, por meio de Lavrov e outros, na metade de julho, que considerava a abordagem, e a ideia que condições fossem impostas para o retorno das propriedades, como insulto. Funcionários do Departamento de Estado interpretaram a resposta como prova de que o propósito real da Rússia era retomar a espionagem.

Sem acordo quanto às dachas, as relações entre Estados Unidos e Rússia entraram em queda livre diplomática.

Mesmo antes da posse de Trump, um grupo de senadores que incluía John McCain, republicano do Arizona, e Ben Cardin, democrata de Maryland, havia começado a redigir um projeto de lei para impor novas sanções à Rússia.

Nos meses seguintes, o gabinete de McCain começou a receber alertas sigilosos de uma fonte informada sobre a Casa Branca. "Disseram-nos que um grande anúncio estava por surgir quanto às sanções contra a Rússia", disse um importante assessor do Congresso. "Todos nós nos preparamos para o pior".

O senador Bob Corker, republicano do Tennessee e presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado, bloqueou a tramitação do anteprojeto de sanções a pedido de Tillerson, que continuava a pedir por mais tempo para negociar com Moscou.

Mas depois da demissão de Comey, no começo de maio, e de meses de manchetes preocupantes sobre Trump e a Rússia, o Senado, alarmado, aprovou as novas sanções por 98 votos a dois.

Há momentos em que Trump não parece compreender como suas ações e comportamento podem intensificar a preocupação do Legislativo. Ao sair de uma reunião com Putin em Hamburgo, ele declarou que o líder russo havia concordado em linhas gerais com um plano cooperativo de segurança cibernética.

O senador Lindsey Graham, republicano da Carolina do Sul, descreveu o acordo proposto como "muito perto de ser a ideia mais idiota que já ouvi na vida", e acrescentou cláusulas ao projeto de lei de sanções que privariam o presidente de boa parte de seu poder para revogá-las –uma redução considerável de uma tradicional prerrogativa presidencial.

Então, no final de julho, surgiram novas informações sobre o alcance das interações entre Trump e Putin em Hamburgo, e isso causou nova onda de ansiedade no Congresso.

Ao final de um suntuoso banquete para líderes mundiais, Trump deixou o lugar que lhe foi reservado para uma conversa particular com o líder russo –sem a presença de qualquer testemunha norte-americana, de acordo com um intérprete do Kremlin.

Um funcionário do governo Trump descreveu a reação ao encontro como exagerada, afirmando que o presidente só havia deixado seu lugar para se sentar ao lado da primeira dama, Melania, cujo lugar na mesa era ao lado de Putin. Qualquer que tenha sido a razão, pouco mais de uma semana depois do jantar, as duas casas do Legislativo norte-americano aprovaram as sanções por margens esmagadoras, que resistiriam a qualquer tentativa de veto de Trump.

A frustração de Trump vinha crescendo, à medida que o projeto se aproximava da votação final. Ele o encarava como validação do argumento de que a Rússia interferiu na eleição, como interferência em sua autoridade executiva, e como um golpe potencialmente fatal para as suas aspirações a uma amizade com Putin, de acordo com seus assessores.

Nos dias que antecederam a votação, Trump assistiu ao programa "Morning Joe", da MSNBC, e se enfureceu quando os apresentadores, Joe Scarborough e Mika Brzezinski, afirmaram que a aprovação do projeto de sanções representaria uma bofetada na cara do presidente.

"Ele ficou furioso", disse um assessor. "Ficou louco da vida".

Depois da aprovação final, Trump ficou "apoplético", o assessor recorda. Foram precisos quatro dias para que seus assessores o convencessem a assinar a lei, argumentando que se ele a vetasse e o Congresso derrubasse o veto, a posição de Trump como presidente ficaria enfraquecida para sempre.

"Olha, a votação foi essa", os assessores disseram ao presidente, de acordo com um segundo assessor de Trump. "Se você vetar o projeto e o Congresso derrubar o veto, você está f—do, e parecerá fraco".

Trump assinou, mas fez questão de deixar clara sua insatisfação. A declaração que fez ao assinar asseverava que a medida incluía "diversas cláusulas inconstitucionais". Trump costuma transformar a assinatura de leis em espetáculo, mas a mídia não foi convidada para a assinatura da lei de sanções.

A reação da Rússia foi devastadora. O primeiro-ministro Dmitry Medvedev insultou o presidente em um post de Facebook que ecoava o estilo de Trump, afirmando que ele havia demonstrado "completa impotência, da maneira mais humilhante, transferindo o poder executivo ao Congresso".

Putin, que havia se comportado de maneira muito contida em dezembro de 2016, reagiu com fúria às novas sanções, ordenando o fechamento de duas instalações diplomáticas dos Estados Unidos e a redução em 755 pessoas do pessoal diplomático norte-americano em seu país - a maioria dos cortes envolviam russos que trabalhavam para os norte-americanos.

Em lugar de declarar apoio às dezenas de funcionários do Departamento de Estado e da CIA que seriam forçados a retornar aos Estados Unidos, Trump expressou gratidão a Putin.

"Quero agradecê-lo, porque estamos tentando cortar a folha salarial", disse Trump a jornalistas em seu clube de golfe em Bedminster, Nova Jersey - uma declaração que seus assessores mais tarde classificariam como gracejo. "Vamos economizar muito dinheiro".

Trump jamais explicou por que parece se alinhar com Putin tão frequentemente.

Para os críticos do presidente, a resposta supostamente está nas alegações não provadas de coordenação entre a Rússia e o comando de campanha de Trump, ou na afirmação de que Putin dispõe de informações comprometedoras sobre o presidente.

Os assessores atribuem o afeto de Trump por Putin à tendência do presidente de personalizar as questões de política externa, e à sua crença inabalável em que um elo entre ele e Putin é a chave para resolver os problemas mundiais.

"Quando todos os haters e tolos que existem por aí perceberão que um bom relacionamento com a Rússia é algo positivo e não negativo?", tuitou Trump no mês passado. "Eles estão sempre fazendo jogo político - ruim para nosso país. Quero resolver a Coreia do Norte, Síria, Ucrânia, terrorismo, e a Rússia pode ajudar muito!"

Alguns funcionários da Casa Branca retratam Trump como o mais recente em uma longa linha de presidentes norte-americanos que iniciaram seus mandatos buscando um relacionamento melhor com a Rússia, e argumentam que as questões persistentes sobre a Rússia e a eleição só facilitam as metas do Kremlin e prejudicam o presidente. "Isso me irrita porque estamos deixando os outros caras vencerem", disse um importante funcionário do governo sobre os russos. Referindo-se à contagem contestada dos votos da Flórida na eleição presidencial de 2000, o funcionário disse: "E se os russos fossem responsáveis pelos problemas com as cédulas? O que teria acontecido a George Bush?"

As acusações de conluio entre a Rússia e a campanha de Trump, que o presidente nega categoricamente, também contribuem para sua resistência a aceitar as informações, disse outro importante funcionário da Casa Branca. Admitir a interferência russa, acredita Trump, daria munição aos seus críticos.

Ainda outras pessoas próximas a Trump explicam sua aversão às constatações dos serviços de inteligência de maneira mais psicológica. O presidente, que se sente profundamente ressentido com o que vê como desrespeito por parte do establishment de Washington, encara o inquérito sobre a Rússia como uma conspiração para negar seu sucesso eleitoral - uma "caça às bruxas", como ele diz frequentemente.

"Se você menciona a interferência russa a ele, para Trump isso é uma manobra contra ele", disse um importante estrategista republicano que discutiu o assunto com confidentes de Trump. "Para ele, tudo isso é uma jogada contra o presidente".

Os últimos meses foram caracterizados por erosão ainda maior do relacionamento entre os Estados Unidos e a Rússia, e por desdobramentos preocupantes para a Casa Branca, como o indiciamento de Paul Manafort, antigo diretor de campanha de Trump, e a admissão de culpa por Flynn.

Trump continua a contestar a investigação do promotor especial, e afirma que será inocentado de qualquer delito, descrevendo o assunto como uma "trapaça" e um "assassinato político".

Alguns dos mais importantes assessores de Trump aceitam essa posição. Um importante membro do governo disse que Trump tem razão ao retratar as investigações e reportagens como ataques com causas políticas, que reduziram a capacidade dos Estados Unidos para trabalhar com a Rússia quanto aos problemas reais.

"Nosso objetivo era chegar a um acordo que nos ajudasse a negociar nosso caminho em um mundo muito perigoso", disse um importante assessor da Casa Branca. "Mas se fizermos qualquer coisa, o Congresso e a mídia sairão gritando."

Putin expressou sua exasperação no começo de setembro, respondendo a uma pergunta sobre Trump com uma brincadeira que satirizava a ideia de uma relação entre os dois presidentes, e aproveitando para fazer uma provocação de gênero ao presidente norte-americano. "Trump não é minha noiva", disse Putin. "E eu não sou o noivo dele."

A declaração expõe a frustração e desencanto que vêm crescendo dos dois lados, por conta do fracasso em promover um avanço nas relações entre Estados Unidos e Rússia, algo que era um dos objetivos de Trump e Putin um ano atrás.

Como resultado, em lugar de formular a política dos Estados Unidos para com a Rússia, Trump às vezes parece ser uma figura marginal em seu próprio governo, incapaz de criar o relacionamento estreito com Putin que ele pretendia mas indisposto a adotar as políticas mais duras para com a Rússia propostas por alguns membros de seu gabinete.

Uma proposta do Pentágono que representaria desafio direto a Moscou –a entrega de armas letais às forças ucranianas que combatem separatistas apoiados pela Rússia– está tramitando há meses, sem resultado.

O plano tem apoio de alguns dos principais membros do gabinete de Trump, entre os quais Tillerson e Jim Mattis, o secretário da Defesa, que expressou apoio a armar as forças ucranianas em uma reunião com o presidente ucraniano Petro Poroshenko em agosto. Mattis "acredita que devemos ajudar aqueles que estão combatendo nossos potenciais adversários", disse um funcionário norte-americano envolvido nas deliberações.

A decisão de enviar ou não as armas cabe ao presidente, e pessoas informadas sobre o assunto dizem que Trump reluta até em se informar sobre a questão.

"Todas as conversas que tive com as pessoas sobre esse assunto foram lógicas", disse o funcionário. "Mas não existe conclusão lógica para o processo, o que revela que o gargalo está na Casa Branca".

Em julho, o governo Trump apontou Kurt Volker, antigo embaixador dos Estados Unidos na Otan, como enviado especial à Ucrânia, encarregando-o do delicado relacionamento entre os Estados Unidos e uma antiga república soviética ávida por conexões mais firmes com o Ocidente.

Putin tomou medidas extraordinárias para impedir que isso aconteça, enviando forças especiais e armamentos russos à Ucrânia em apoio aos separatistas pró-Rússia. E o presidente russo encara com amargor as sanções norte-americanas e europeias impostas à Rússia por sua agressão. Uma decisão de enviar armas aos ucranianos provavelmente resultaria em um rompimento grave das relações entre os Estados Unidos e a Rússia, sem possibilidade de reparo imediato.

Trump se viu forçado a encarar essas complexidades em setembro, quando se encontrou com Poroshenko nas Nações Unidas. Volker teve uma reunião com Trump a fim de prepará-lo para o encontro. Tillerson, McMaster e o chefe de gabinete de Trump, John Kelly, que substituiu Priebus, também estavam presentes.

Trump pressionou Volker a explicar por que interessa aos Estados Unidos apoiar a Ucrânia, e por que dinheiro dos contribuintes norte-americanos deveria ser gasto para isso, contou Volker em entrevista. "Por que isso vale a pena?", Volker diz que Trump perguntou. O presidente pareceu ter aceitado o arrazoado que o enviado delineou para o envolvimento norte-americano.

"Acredito que ele deseje resolver a questão, que ele queira um relacionamento melhor, mais construtivo, entre Estados Unidos e Rússia", disse Volker. "Creio que ele gostaria de ver [o conflito entre Rússia e Ucrânia] resolvido... consertar o problema para que possamos chegar a um lugar melhor."

A conversa era sobre a Ucrânia, mas parecia capturar a frustração de Trump quanto a muitas coisas relacionadas à Rússia - a eleição, as investigações, as complicações que solaparam seu relacionamento com Putin.

Volker diz que o presidente repetiu uma mesma frase pelo menos cinco vezes: "eu quero paz".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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