Folha de S. Paulo


Armas dos EUA ajudaram EI na 'revolução industrial do terrorismo'

Conflict Armament Research
Grupo de 122 metralhadoras chinesas recuperadas próximo a Mossul, no Iraque
Grupo de 122 metralhadoras chinesas recuperadas próximo a Mossul, no Iraque

O Estado Islâmico pode se destacar por sua brutalidade no Iraque e na Síria, onde organizou massacres de civis e atentados com homens-bomba e explodiu residências com milhares de explosivos improvisados. Mas um novo relatório, que levou três anos em elaboração, descreve o grupo como hábeis fabricantes e planejadores logísticos que movimentaram armas, munições e materiais para a fabricação de bombas por toda a zona de guerra, em uma escala sem precedentes para uma organização terrorista.

O grupo de rastreamento de armas Conflict Armament Research (CAR), sediado no Reino Unido, documentou mais de 40 mil armas de fogo e munições em todo o Iraque e a Síria, enviando investigadores em campo em um arco que vai da cidade de Kobane, no norte da Síria, ao sul de Bagdá, a capital iraquiana –um desenho aproximado do percurso do Estado Islâmico para conquistar amplas áreas de território e estabelecer seu califado.

O relatório, que os pesquisadores chamam de o mais abrangente até hoje sobre como o EI obteve e remeteu suas armas, foi publicado na quinta-feira (14) e poderá se tornar um instrumento vital para se compreender a eficácia mortífera industrial do grupo terrorista. Aqui estão alguns exemplos:

– O EI usou foguetes fornecidos pelos EUA –possivelmente violando acordos com os fabricantes de armas.

Como relatou "The Washington Post" em julho, o governo Trump pôs fim a uma operação secreta da CIA para armar rebeldes sírios moderados que combatiam o presidente Bashar al Assad. Poucos detalhes sobre que armas eles receberam são conhecidos pelo público, mas os pesquisadores encontraram diversos foguetes no Iraque que parecem ter sido comprados pelos EUA e fornecidos a grupos sírios.

Em um caso, foguetes PG-9 de 73mm, vendidos por fabricantes romenos ao Exército dos EUA em 2013 e 2014, foram encontrados espalhados em ambos os campos de batalha.

Contêineres com números de lotes iguais foram encontrados no leste da Síria e recuperados em um comboio do EI na cidade iraquiana de Fallujah, diz o relatório. Os foguetes, adaptados pelo EI para usar em seus lançadores, deu aos militantes uma arma potente contra os tanques e Humvees blindados fornecidos pelos EUA.

Registros obtidos pelo CAR de autoridades romenas incluem acordos indicando que os EUA não reexportariam essas e outras armas, como parte da tentativa de conter o tráfico de armas. A Arábia Saudita foi outra fonte de transferências de armas não autorizadas para a Síria, diz o relatório.

O documento afirma que o governo americano não respondeu a pedidos para rastrear estas e outras armas documentadas pelo CAR. Um porta-voz do Departamento da Defesa não respondeu aos pedidos de comentários.

Conflict Armament Research
Míssil modificado produzido na Romênia, exportado para os EUA e documentado em Mossul (Iraque)
Míssil modificado produzido na Romênia, exportado para os EUA e documentado em Mossul (Iraque)

– O EI levou apenas algumas semanas para pôr as mãos nos mísseis antitanques americanos.

Em 12 de dezembro de 2015, a Bulgária exportou tubos lançadores de mísseis antitanques para o Exército americano por meio de uma companhia sediada em Indiana chamada Kiesler Police Supply.

Cinquenta e nove dias depois, a polícia federal do Iraque capturou os restos de uma dessas armas depois de uma batalha em Ramadi, no Iraque, segundo o relatório.

Em outro caso, um grupo rebelde apoiado pelos EUA na Síria foi fotografado usando um tubo lançador com um número de lote idêntico, indicando que provavelmente veio da mesma remessa, segundo o relatório.

O episódio ilustra quão rapidamente as armas fornecidas pelos EUA podem ser voltadas contra seus aliados, remodelar um campo de batalha e representar perigo para as pequenas equipes de tropas especiais dos EUA que habitualmente viajam em veículos despreparados para suportar armas antitanques.

– Operações e experimentação em escala industrial foram chaves para espalhar morte e medo.

Os investigadores do CAR notaram que materiais como pasta de alumínio e outros precursores químicos da Turquia usados para fazer cargas de morteiros e foguetes foram encontrados em Tikrit, Mossul, Fallujah e outros locais no Iraque.

Isso significa uma robusta operação logística para entregar matérias-primas a pesquisadores e engenheiros do EI utilizando máquinas industriais e produzindo componentes para munições, diz o relatório.

"Isso confirma minha teoria de que esta é a revolução industrial do terrorismo", disse recentemente Damien Spleeters, diretor de operações do CAR no Iraque e na Síria, à revista "Wired". "E para isso eles precisam de matérias-primas em quantidades industriais."

Os militantes também modificaram alguns foguetes disparados do ombro usando materiais para reduzir a gravidade do calor dos lançamentos de foguetes, que é perigoso em espaços urbanos fechados, relatou a "Wired".

– A propaganda do EI mostrando rifles americanos foi exagerada.

Vídeos e imagens de pequenas armas feitas pelos EUA capturadas pelo EI, especialmente rifles de serviço M16 e M4, são apresentados com destaque em vídeos de propaganda para divulgar a derrota de grupos armados e treinados por pessoal dos EUA.

Enquanto essas armas parecem ter sido entregues a comandantes como troféus de guerra, a documentação do CAR concluiu que não houve um grande influxo de rifles feitos nos EUA no campo de batalha.

Só 3% das armas e 13% da munição documentada por pesquisadores do CAR eram calibres de acordo com a Otan, como o cartucho de 5.56mm usado em M16s e em países europeus ocidentais. Virtualmente todas as outras armas e munições vieram da China, Rússia e países do Leste Europeu.

Os motivos são simples: as tropas sírias e muitas forças iraquianas adotam rifles AK47 e metralhadoras como a RPK, que usam munição de 7.62mm produzida por antigos regimes comunistas.

O fornecimento de armas tiradas do campo de batalha era compatível com a chegada constante de carregamentos de munição 7.62, tornando as armas do tipo AK47 as preferidas pelos combatentes do EI.

– O Irã foi responsável por inundar o Iraque de foguetes durante as operações contra o EI.

Bulgária, Irã e Romênia produziram a maior parte dos novos foguetes de 73mm recuperados do EI, diz o relatório.

Mas a injeção de novos foguetes antitanques iranianos é uma medida sutil de como Teerã ganhou influência no auge das operações contra o EI, seu adversário ideológico.

Quase todos os foguetes iranianos recuperados do EI no Iraque foram produzidos depois de 2014, com 59% fabricados só em 2015, diz o relatório, fluindo para oeste no período mais instável no Iraque durante o conflito.

A presença dessas armas pode indicar pelo menos algumas vitórias do EI e a captura de equipamento pertencente às Forças de Mobilização Popular do Iraque, que incluem milícias armadas e treinadas por assessores militares do Irã. Grupos apoiados pelo Irã também foram usados por Assad na Síria para reforçar seu Exército debilitado.

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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