Folha de S. Paulo


Análise

Projeto modernizador de príncipe herdeiro saudita mira economia

Com o anúncio de que a Arábia Saudita vai permitir a reabertura de salas de cinema, pouco depois de deixar que as mulheres conduzam carros, as caixas de comentário da internet se rechearam de indagações sarcásticas: qual é o próximo passo, direitos humanos?

A pergunta pressupõe que avanços sociais sejam impossíveis ali, como se o reinado estivesse fadado a ser para sempre o que é hoje: um país conservador pautado por uma interpretação rígida do islã.

Agência de Notícias Saudita - 5.dez.2017/Reuters
O príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman participa de reunião de gabinete em Riad
O príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman participa de reunião de gabinete em Riad

É um ponto de vista pouco original —há séculos os orientalistas tendem a olhar para os árabes e para os muçulmanos como comunidades estanques, enraizadas no tempo e sem perspectiva de avanço.

Mas não há impedimentos para que a Arábia Saudita engate um amplo projeto modernizador e deixe para trás as restrições que lhe deram a fama de antiquada. Parece ser justamente o que o príncipe herdeiro Mohammad bin Salman, 32, vulgo MBS, está tentando promover.

É a ele que analistas creditam o sinal verde dado às mulheres para que, a partir de junho, possam dirigir. MBS também esteve por trás da decisão de permitir a instalação de salas de projeção, depois de 35 anos de proibições —ainda que os filmes venham a ser supervisionados por clérigos e passem por censura, como já é feito em algumas empresas aéreas da região.

Houve outros avanços nos últimos meses, não menos revolucionários. Há medidas para que mulheres possam usar o celular na universidade, saiam do campus de manhã sem a autorização de seus pais e assistam a jogos de futebol.

Os gestos fazem parte, em um contexto mais amplo, do programa de modernização da economia saudita. A ideia é depender menos do petróleo, produto que tem perdido valor. A progressiva inclusão das mulheres no mercado não é, portanto, acidental.

No mês passado, MBS também deteve dezenas de membros da elite saudita, incluindo outros príncipes, em um hotel de luxo, no que ele apontou como gesto de combate à corrupção.

Não são reformas fáceis, e os planos de MBS esbarram em uma população ainda conservadora e em suas próprias limitações como modernizador —deter outros príncipes subitamente e sem o amparo de um marco legal não lhe deu exatamente a fama de um moderado.

Mas eis um histórico alentador para os avanços sociais: inovações anteriores sofreram boicote na Arábia Saudita, mas prosperaram, como a introdução da TV, nos anos 1960.

Conta-se que a ira naquela década era tamanha que um sobrinho do rei Faisal morreu ao liderar um ataque a um canal televisivo. Hoje, clérigos têm seus próprios programas.

O mesmo aconteceu com a ideia de que meninas pudessem receber educação. Segundo a administração saudita, em 2015, as mulheres constituíam 51,8% do total de estudantes universitários no país e 35 mil delas estudavam no exterior com bolsas pagas pelo governo.

ALIANÇA

A tensão entre tradição e moderno, um dos traços perenes da história saudita, está relacionada a como esse país foi formado, algo que remonta à aliança política travada em 1744 entre Muhammad bin Saud, fundador da dinastia reinante, e o clérigo Muhammad ibn Abd al-Wahhab.

Saud adotou a visão rígida do islã de Abd al-Wahhab e, apoiado nela, expandiu seu domínio dentro da península. Essas crenças, que ainda estão na base da monarquia atual, são conhecidas como "wahabismo" e influenciam grupos terroristas como a Al Qaeda e o Estado Islâmico.

A aliança entre política e religião explica em parte a resistência saudita à modernidade. Para a influente classe dos clérigos, permitir as inovações que chegaram com a descoberta do petróleo significa diluir a identidade única dessa monarquia, ainda hoje relativamente isolada.

Mas as identidades mudam —como mudou a Europa, que no século 19 era marcada por impérios hoje já esquecidos—, e a Arábia Saudita não precisa viver a maldição prevista pelos orientalistas. Pode reinventar suas alianças e sua própria visão do islã, como têm defendido os modernizadores.

O príncipe tem seus aliados, incluindo a distribuição demográfica do país. Dos 33 milhões de sauditas, estima-se que 51% tenham menos de 25 anos, e o próprio MBS tem apenas 32. O que vamos ver nos próximos anos, talvez na tela de um cinema saudita, é com que país eles sonham e que país vão conseguir construir.


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