Folha de S. Paulo


Internet criada pela 'direita alternativa' remete aos anos 90

Ilana Panich-Linsman - 4.mai.2014 /The New York Times
Cody Wilson, que criou a Hatreon para dar a personalidade da direita alternativa uma maneira de levantar fundos para projetos, em Austin (Texas)
Cody Wilson, que criou o Hatreon para dar a personalidade da direita alternativa uma maneira de levantar fundos para projetos, em Austin (Texas)

Se você já perdeu noites de sono preocupado com o poder crescente da "direita alternativa" - aquela nebulosa coalizão de nacionalistas brancos, antifeministas, reacionários de extrema direita e trolls criadores de memes -, eu talvez tenha descoberto a cura para sua ansiedade.

Basta visitar os sites que eles criaram.

Nos últimos meses, quando sites como o YouTube, Twitter e Facebook começaram a reprimir a retórica do ódio e excluíram de suas redes alguns usuários conservadores notórios, a direita alternativa decidiu declarar sua independência tecnológica do Vale do Silício. Ativistas da direita dura prometeram criar versões desses serviços digitais nas quais todas as opiniões políticas seriam aceitas, por mais cruas ou incendiárias que fossem.

Mais de uma dúzia de empresas de "tecnologia alternativa" emergiram, até agora, cada qual prometendo refúgio contra a correção política e a censura.

Há o Gab, um serviço de mídia social que funciona como uma espécie de Twitter alternativo, criada no ano passado e adotada por figuras proeminentes da direita, como Milo Yiannopoulos e Andrew Anglin, fundador do site neonazista Daily Stormer.

Há o WrongThink (alternativa ao Facebook), o PewTube (alternativa ao YouTube), o Voat (alternativa ao Reddit), o Infogalactic (alternativa à Wikipedia) e o GoFundMe (alternativa ao Kickstarter). Há até o WASPlove, um site de encontros para nacionalistas brancos e outras pessoas que desejem "preservar sua herança".

Recentemente, dediquei alguns dias a testar diversos desses serviços alternativos de tecnologia. Criei contas, estudei seus recursos e interfaces e entrevistei usuários de cada site sobre suas experiências. (Com autorização de minha mulher, até criei um perfil no WASPlove, me definindo como um jornalista de Nova York interessado em entrevistar supremacistas brancos infelizes no amor. Estranhamente, não consegui voluntários.)

O que encontrei nesses sites me causou mais pena do que medo. É claro que algumas das plataformas da direita alternativa estão repletas de exemplos perturbadores de imagens e de lixo preconceituoso nazista. Mas a maioria deles eram cidades-fantasmas, com poucos usuários ativos e sem qualquer fiscalização perceptível.

Como produtos de tecnologia, muitos provaram ser trabalhos de segunda ou terceira linha, com longa demora para carregar páginas, links quebrados e mensagens de erro frequentes. Alguns já nem estavam mais online.

Se a ideologia da direita alternativa recua à Alemanha dos anos 1940, o design de seus sites conduz ao GeoCities dos anos 1990. Mesmo os adeptos do movimento expressam crescente frustração. Um usuário do Gab, que afirmava estar usando o site depois de ser suspenso temporariamente do Twitter, se queixou em um post público da inferioridade tecnológica do site.

"Eu investi no Gab", escreveu o usuário, cujo nome de usuário é @AnewThomasPaine. "Acredito na ideia, mas estou decepcionado com a plataforma."

Em outra mensagem, ele escreveu que "mal uso o serviço porque há poucos usuários ativos, e poucos dos recursos essenciais estão disponíveis, mesmo depois de um ano".

O Gab, que afirma contar com mais de 300 mil usuários registrados, é supostamente uma das histórias de sucesso no ramo da tecnologia alternativa. O serviço atraiu muita atenção ao ser lançado no ano passado, e arrecadou mais de US$ 1 milhão em uma campanha de crowdfunding, o que o torna uma das raras plataformas de tecnologia alternativa a dispor de recursos significativos.

Utsav Sanduja, vice-presidente de operações do Gab, disse à revista "Slate" este ano que a empresa estava criando uma organização chamada "Aliança Tecnológica Pela Liberdade de Expressão", e que havia recrutado mais de 100 engenheiros do Vale do Silício para ajudar.

Mas hoje o site do Gab apresenta bugs e uma organização confusa, e boa parte de sua atividade parece depender de um pequeno núcleo de usuários frequentes. Diversas das figuras mais conhecidas que postavam por lá abandonaram o serviço. ("Eu sou um sujeito que segue uma rotina, e abandonei a rotina de postar por lá", me disse Mike Cernovich, uma notória personalidade da direita alternativa.)

O site também passou por dramas de censura este ano, quando moderadores removeram um post que zombava de Heather Heyer, ativista morta durante os protestos em Charlottesville.

Andrew Torba, o fundador do Gab, se recusou a comentar sobre o progresso do serviço, dizendo-me, em mensagem via Gab, que "não dou entrevistas para veículos que publicam notícias falsas".

Por isso, conversei com Cody Wilson, um desenvolvedor de software do Texas que está por trás de outro serviço de tecnologia alternativa. O produto de Wilson, um site de crowdfunding chamado Hatreon, tinha por objetivo oferecer a personalidades da direita alternativa, e outros interessados, a oportunidade de arrecadar fundos para projetos considerados ousados demais para plataformas convencionais de crowdfunding como o Patreon e o Kickstarter.

O Hatreon começou bem, com mais de 400 criadores arrecadando cerca de US$ 25 mil ao mês na plataforma. Mas recentemente vem enfrentando dificuldades. Segundo Wilson, uma grande operadora de cartões de crédito, cujo nome ele não citou, retirou o Hatreon de sua rede no mês passado, impedindo que muitos visitantes bancassem projetos no site e praticamente eliminado as perspectivas de crescimento da companhia.

Hoje, os visitantes que chegam ao site da Hatreon encontram a mensagem de que "as doações estão temporariamente suspensas enquanto atualizamos nossos sistemas".

Wilson, que não se descreve como parte da direita alternativa, disse ter aceitado que criar um negócio de tecnologia alternativa viável pode ser impossível, consideradas as restrições práticas.

"Não compreendo como qualquer deles planeja sair do vermelho", ele disse,

As coisas não estão indo muito melhor no WrongThink, que começou a operar no final de 2016, com a aspiração de ser uma alternativa sem censura ao Facebook e Twitter. Um ano mais tarde, o WrongThink só tem sete mil usuários registrados, de acordo com seu fundador, conhecido pelo nome de usuário Bane Biddix.

Os ativistas de extrema direita vêm tentando criar plataformas tecnológicas alternativas há anos, com pouco sucesso. Uma década atrás, sites de nacionalistas brancos com nomes como New Saxon e PodBlanc surgiram para competir com o Myspace, Friendster e outros gigantes da mídia social da era.

Mas maioria desses sites fechou quando o dinheiro de seus criadores acabou, ou quando eles encontraram problemas legais. E nenhum chegou perto de conquistar audiência de massa.

É verdade que estamos apenas no começo da trajetória dessa nova onda de serviços, que vão amadurecer nos anos Trump e podem se beneficiar da mudança de normas quanto à cultura da correção política e do que constitui discurso aceitável.

Alguns líderes da direita alternativa esperam que o "expurgo" que está por vir no Twitter - a forma pela qual eles definem as mudanças nas normas do site quanto a retórica do ódio, que o Twitter planeja implementar a partir do começo da semana que vem - conduza muitos usuários insatisfeitos às plataformas de tecnologia alternativa.

Mas Mark Pitcavage, que estuda o extremismo de direita na Liga de Combate à Difamação, me disse que as empresas da direita alternativa enfrentam diversas barreiras estruturais. Não só precisam criar produtos satisfatórios e atrair usuários - um desafio complicado mesmo nas melhores circunstâncias - mas têm de fazê-lo sem acesso a fontes convencionais de investimento, como companhias de capital para empreendimentos e os chamados "angel investors", que fornecem boa parte do combustível de outras startups. Eles também precisam encontrar empresas que se disponham a hospedar seu conteúdo e processar seus pagamentos.

"Operar na Internet é uma empreitada coletiva", disse Pitcavage. "Você depende de um provedor de acesso, um serviço de nome de domínio, um processador de pagamentos. É bem comum que uma ou mais dessas organizações opte por não fazer negócios com um grupo que promove a supremacia branca."

Também existe uma escassez de talentos nas empresas de tecnologia alternativa, muitas das quais dependem de voluntários. A maioria delas não tem como pagar salários da ordem dos exigidos pelos programadores mais requisitados.

"Falando com franqueza, você não encontra talentos de engenharia 10x trabalhando com essas pessoas", disse Wilson, da Hatreon, usando um termo popular do Vale do Silício para os programadores mais procurados. "Ninguém vai fazer fila por um emprego desses."

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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