Folha de S. Paulo


Fugitivas do Boko Haram são estupradas por soldados da Nigéria

Adam Ferguson/The New York Times
Hadiza, 18, que diz ter sido estuprada pelo menos 20 vezes por soldados em campo de refugiados em Maiduguri (Nigéria)
Hadiza, 18, diz ter sido estuprada por soldados em campo de refugiados em Maiduguri (Nigéria)

O acampamento deveria ser um refúgio. A vida de Falmata tinha sido roubada pela guerra desde a sexta série, quando ela foi raptada de sua casa e violentada repetidamente pelos combatentes do Boko Haram durante os três anos seguintes.

Finalmente ela escapou, na última primavera, escondendo-se no mato enquanto seus captores dormiam. Com 14 anos e sozinha, ela chegou a um acampamento para vítimas da guerra, e se preparava para dormir à noite quando ouviu passos fora de sua tenda. A voz de um oficial de segurança lhe disse para sair. Assustada, ela obedeceu.

Ele a levou a seu dormitório, segundo a jovem, e a estuprou.

Horas depois, ela tinha voltado à sua tenda, mas outro oficial chegou e também a violentou.

"No mesmo dia em que fui trazida para cá os soldados começaram a me violentar", disse Falmata. "Foi um depois do outro. Nem sei se eles sabiam disso."

O estupro tem sido um horror que define a guerra com o Boko Haram, que consume o nordeste da Nigéria há oito anos e se espalhou além de suas fronteiras.

Pelo menos 7.000 mulheres e meninas suportaram a violência sexual do Boko Haram, segundo estimativa da ONU. Os militantes raptam e violentam meninas, adolescentes e mulheres, tratando-as como supostas "noivas" que às vezes são passadas entre os combatentes.

Mas as forças de segurança da Nigéria também violentaram vítimas da guerra, atacando as pessoas que deveriam proteger. Dezenas de casos de estupro, violência sexual e exploração sexual foram relatados em sete campos em Borno só no ano passado, praticados por guardas, autoridades dos campos, oficiais de segurança e membros de grupos de vigilância civis, diz a ONU.

Há mais de um ano, o governo nigeriano prometeu investigar as denúncias de estupro nos campos para as pessoas desalojadas pela guerra, dizendo que "são relatos muito perturbadores que serão tratados a sério". Mas as narrativas de ataques sexuais nos campos ainda são comuns, inclusive de meninas que dizem ter sido vítimas de soldados em diversas ocasiões.

"Os soldados chegavam e me seguravam com muita força", disse uma menina de 13 anos em uma entrevista. Ela disse que foi violentada cerca de dez vezes neste ano em um acampamento em Maiduguri, cidade no centro da luta contra o Boko Haram, antes de fugir para se proteger.

"Eles tinham idade para ser meus pais", disse ela sobre os soldados que a agrediram.

Os militares nigerianos limparam partes da zona rural para caçar os esconderijos do Boko Haram, obrigando centenas de milhares de civis a mudar-se para enormes assentamentos em todo o nordeste do país. Muitos outros civis chegaram aos campos por conta própria, depois de fugir dos ataques mortíferos do Boko Haram.

A maioria dos acampamentos está lotada, e novas pessoas chegam todos os dias. Comida e água são muitas vezes escassos, dizem os moradores, e os profissionais de saúde combatem um surto de cólera que já matou dezenas de pessoas.

À noite, os campos são mal iluminados. Trabalhadores de ajuda vêm durante o dia, mas geralmente não depois que anoitece, por causa do toque de recolher. As forças de segurança controlam rigidamente o que entra e sai dos campos, às vezes coagindo as mulheres e meninas a trocar sexo por comida.

Autoridades do governo dizem que precisam de segurança 24 horas para proteger os residentes, especialmente já que alguns campos costumam ser alvo de homens-bomba usados pelo Boko Haram.

Em um campo, chamado Aldeia dos Professores, alguns moradores disseram que as forças de segurança criaram um sistema para selecionar suas vítimas. As jovens eram chamadas para cozinhar para eles. Depois que terminavam, as autoridades insistiam que elas limpassem tudo, dizendo-lhes para ir tomar banho no dormitório dos oficiais enquanto os homens assistiam.

"No início ninguém sabia que estavam fazendo isso, mas então começaram a correr pelo campo histórias de que qualquer uma que fosse cozinhar para eles seria estuprada", disse Hadiza, 18.

Depois de viver no acampamento por várias semanas, contou Hadiza, ela foi escolhida para cozinhar para os oficiais. Ficou aterrorizada.

"Definitivamente minha hora chegou", ela lembra de ter pensado.

Ashley Gilbertson - 15.fev.2017/The New York Times
Pessoas caminham em Maiduguri, na Nigéria, para onde muitos refugiados do Boko Haram fugiram
Pessoas caminham em Maiduguri, na Nigéria, para onde muitos refugiados do Boko Haram fugiram

Mais tarde foi chamada para servir água a quatro seguranças em seu quarto enquanto eles jantavam. Os homens foram saindo até que ficou só um. Ele a arrastou para outro quarto e a violentou, disse ela.

Hadiza ficou ferida, segundo disse, mas não pediu ajuda médica, temendo que os oficiais tentassem se vingar. Ela disse que tentou manter-se escondida durante algumas semanas, mas os oficiais a avistaram e a estupraram de novo. A jovem sofreu a agressão cerca de 20 vezes no campo, disse.

"Quando eles a identificam como uma garota com quem querem fazer sexo, é difícil a deixarem em paz um único dia", disse Hadiza.

Na primavera, a notícia dos estupros na aldeia dos professores se disseminou por Maiduguri e começaram a aparecer pessoas nos portões procurando parentes. Familiares distantes vieram buscar Hadiza e a levaram embora.

No ano passado, o presidente Muhammadu Buhari pediu uma investigação dos ataques sexuais nos acampamentos, depois que a Human Rights Watch narrou os abusos em um relatório, e ordenou novas medidas para proteger os vulneráveis.

Os oficiais de segurança receberam mais treinamento, e pelo menos cem oficiais mulheres foram mobilizadas para o interior dos campos. Em consequência, o número de queixas de abuso sexual diminuiu, segundo alguns grupos de ajuda e a polícia.

A polícia prendeu vários homens por abuso sexual e exploração de mulheres e meninas, segundo a embaixada dos EUA. As prisões, feitas em dezembro do ano passado, incluem dois policiais, um carcereiro, dois milicianos civis, um funcionário público e três soldados.

Mas um Conselho de Investigação Especial do Exército disse em junho que as denúncias contra os soldados nos campos eram infundadas, enquanto Jimoh Moshood, um porta-voz da polícia, afirmou que as investigações estavam em curso.

"Muito pouco progresso foi feito pelas autoridades nigerianas para implementar a promessa de justiça para as sobreviventes feita pelo presidente Buhari", disse Mausi Segun, diretora-executiva da divisão África da HRW. "O atraso reforça a sensação de impotência das pessoas deslocadas e provavelmente incentiva outros perpetradores a abusar de sua vulnerabilidade."

Na guerra com o Boko Haram, as forças de segurança nigerianas foram acusadas de muitos abusos aos direitos humanos, incluindo assassinar civis inocentes e deter crianças durante meses para determinar sua lealdade política.

Nos postos de controle para entrar em Maiduguri, soldados e milicianos recusaram grandes grupos de deslocados que fugiam do Boko Haram, a menos que pagassem uma "taxa de entrada", segundo profissionais de ajuda. As pessoas que escapam com seus rebanhos às vezes têm de pagar uma taxa por animal. Os que não podem pagar são repelidos na direção do perigo.

Dentro dos campos, soldados e membros de grupos de vigilantes civis foram acusados de obrigar as pessoas a pagar pelo privilégio de armar barracas ou abrigos improvisados com lonas e capim. Alguns desalojados disseram à Anistia Internacional que tiveram de vender seus bens para sobreviver, e quando não tinham mais nada para vender tiveram de fazer sexo com os soldados e milicianos civis para conseguir comida.

Falmata, a menina de 14 anos raptada pelo Boko Haram, disse que sua provação começou quando ela estava na escola primária, fazendo sua lição e dançando ao som da música kanuri.

Os militantes invadiram sua casa e a levaram enquanto ela cuidava de sua mãe doente. Eles a obrigaram a casar-se com um combatente, mas o homem morreu em uma batalha uma semana depois e eles a deram a outro marido. A garota tentou resistir, então a entregaram a um terceiro. Apenas uma adolescente na época, ela engravidou, mas o bebê morreu dias depois de nascer.

Certa noite, Falmata acordou e percebeu que o campo inteiro estava dormindo. "Chegou a hora", pensou. Então correu até chegar a uma aldeia, onde uma mulher idosa com uma lanterna lhe indicou uma estrada. Soldados a localizaram a levaram ao campo Dalori, um lugar extenso perto de Maiduguri.

Ela pensou que estava sendo posta em segurança, mas imediatamente enfrentou o mesmo tipo de abuso sexual do qual havia fugido sob risco de vida. E desta vez estava sendo cometido por pessoas que estavam lá para protegê-la.

Durante seus dois meses no acampamento, disse ela, oficiais de segurança, nem sempre os mesmos, a procuraram repetidamente. Falmata descreveu os homens como "soldados", mas não estava claro se eram membros dos militares, da polícia ou de outra força de segurança. Ela disse que eles portavam armas.

"Senti que aquilo continuaria para sempre", disse.

Falmata sabia que tinha de fugir de novo, então pediu um passe para ir ao mercado. Ela saiu do campo do mesmo modo que tinha escapado do Boko Haram: sozinha, sem dinheiro e sem ideia de para onde iria.
Lembrava que quando menina tinha visitado sua avó uma vez em Maiduguri, mas tinha uma vaga noção de onde ficava. Falmata viu um homem que tinha avistado no campo e falava seu dialeto, então pediu ajuda.

"Olhe, tenho um problema", disse ela. "Essas pessoas vão me matar. Eles me procuram todas as noites."

Os dois dirigiram pela cidade durante horas, tentando localizar a avó de Falmata, perguntando a todos. Afinal a encontraram. Ela pensava que Falmata estivesse morta.

Hoje a jovem vive com a avó, mas tem vergonha de lhe contar o que aconteceu. Algum dia ela espera continuar seus estudos e ser uma advogada. Quer representar os que não têm poder.


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