Folha de S. Paulo


Menina afegã cresce na cadeia com mãe condenada à prisão perpétua

Mauricio Lima/The New York Times
Meena, 11, senta ao lado da mãe, Shirin Gul, condenada à prisão perpétua por matar 27 homens
Meena, 11, senta ao lado da mãe, Shirin Gul, condenada à prisão perpétua por matar 27 homens

Meena nasceu na prisão. Ali foi concebida, ali teve catapora, rubéola e caxumba. Ali a menina passou seus 11 anos, e ali deverá permanecer até completar 18.

Meena não cometeu nenhum crime. Mas sua mãe, Shirin Gul, foi condenada à prisão perpétua por 27 assassinatos, e a política prisional afegã lhe permite manter a filha consigo até a maioridade.

A menina nunca viu TV e não tem ideia de como é o mundo fora dos muros. Sua provação é enorme, mas não é exceção. Na ala feminina do presídio de Nangarhar, há mais 35 crianças como ela entre 42 detentas. Nenhuma outra, porém, passou tanto tempo ali, já que a maioria das mães tem penas menores.

Trancar crianças com suas mães é comum no Afeganistão, sobretudo quando não há mais parentes próximos, ou os pais estão ausentes. Defensores de crianças calculam haver centenas delas presas no país. Seu único crime é ter uma mãe condenada.

Há um programa de orfanatos para filhos de detentas, mas as mulheres têm de permitir que os filhos e filhas sejam levados, e muitas áreas do país não são cobertas.

Na prisão de Meena, as celas são organizadas em torno de um pátio espaçoso, sombreado por amoreiras, e as crianças ficam à vontade.

Há balanços enferrujados e escorregadores que acabam em poças de lama. Uma das celas abriga uma sala de aula com um quadro branco e assentos para 16 crianças. Ali, a única professora cuida de três séries, durante uma hora por dia para cada série. Meena, 11, chegou à segunda.

"Passei minha vida inteira aqui", afirma Meena em uma tensa entrevista. "Quero sair. Quero ir embora e viver lá fora com a minha mãe, mas não vou sair sem ela."

A menina fala suavemente, tem boas maneiras e um rosto delicado emoldurado por um hijab. Sua mãe fuma sem parar, fala alto, de forma ousada, e expõe tatuagens em um país onde elas são consideradas heresia. Seu lenço enviesado mostra os cabelos tingidos de henna.

"Como você acha que ela se sente?", diz Gul, impaciente com o que chama de perguntas idiotas. "Isto é uma prisão. Como ela pode se sentir? Uma prisão é uma prisão, mesmo se for no paraíso."

Gul se irrita quando a filha é indagada sobre o porquê de a mãe não deixá-la sair. "Você, senhor América, diga àquele cego do [presidente] Ashraf Ghani, seu fantoche, para me tirar daqui", diz. "Eu não cometi nenhum crime. Minha única culpa é que eu cozinhei para meu marido, que cometeu um crime."

OS CRIMES

Rahmatullah, o marido, foi condenado com seu filho, o cunhado, um tio e um sobrinho pelos assassinatos e roubos de 27 afegãos de 2001 a 2004. Promotores disseram que Gul era a chefe do bando. Prostituta, ela levava os clientes para casa, muitos deles taxistas, e lhes servia kebabs envenenados. Depois os parentes os matavam, roubavam e enterravam os corpos no quintal de duas casas.

Os seis foram condenados à morte, e os cinco homens foram enforcados. Gul engravidou enquanto esperava sua pena, que acabou adiada. Quando Meena nasceu, a sentença foi comutada por prisão perpétua pelo então presidente, Hamid Karzai.

Ela antes nega ter confessado os crimes, depois diz ter sido torturada para fazê-lo. Ameaça o repórter de morte, até a filha por um dedo em seus lábios e pedir": "shh".

A menina segura um saco plástico amarelo com fotos do pai. Rahmatullah, que como muitos afegãos só tinha um nome, também foi condenado pela morte do primeiro marido de Gul, um coronel da polícia, quando mantinha um caso com Gul. O corpo do oficial foi achado no quintal.

Antes, ele havia sido condenado por pedofilia e roubo e era, supostamente, um ex-comandante Taleban.

O que Rahmatullah quase certamente não era: o pai biológico de Meena. Ele estava preso quando envolveu Gul nos assassinatos, e os dois estavam em prisões diferentes em cidades diferentes quando a menina foi concebida.

As autoridades afegãs acusaram Gul de engravidar de um funcionário do presídio para evitar o cadafalso.

Em entrevista em 2015 a "The New York Times", Gul admitiu que ela e Rahmatullah, com quem nunca se casou formalmente, haviam matado o marido juntos. Na nova entrevista, ela o negou.

"Eu não estaria aqui se não fosse por ele. Eles deveriam me executar. Meena choraria por um dia e tudo estaria terminado. Em vez disso, choro todo dia, é uma morte lenta."

Nos momentos de calma, Gul transmite uma mensagem simples: Meena merece ser livre. Mas ela não será libertada se sua mãe não for: "Diga isso a Ashraf Ghani!".

A manutenção de crianças na prisão no Afeganistão é um escândalo sem solução fácil, segundo os advogados. "Essas crianças não cometeram crime nenhum", afirma Bashir Ahmad Basharat, diretor da Rede de Ação de Proteção às Crianças, órgão semigovernamental. A medida contraria normas internacionais e a própria lei afegã, diz, apesar de generalizada. "Não temos alternativas", afirma.

Meena se despede com um aperto de mãos antes de seguir para o lado oposto do pátio com Salma, de braços dados, levando o saco amarelo.

Gul, mais calma, cumprimenta os visitantes educadamente e, com um olhar firme e desafiador, pede dinheiro.

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


Endereço da página:

Links no texto: