Folha de S. Paulo


A vida sob Kim Jong-un: as histórias de 25 norte-coreanos que fugiram do país

Dominic Bugatto

Quando Kim Jong-un se tornou o líder da Coreia do Norte, quase seis anos atrás, muitos norte-coreanos pensaram que sua vida ia melhorar. Ele ofereceu a esperança de uma transição geracional na dinastia comunista mais duradoura do mundo. Afinal, ele era tão jovem. Era da geração do milênio. Alguém que tinha experiência do mundo exterior.

Mas o "Grande Sucessor", como o regime o chama, mostrou-se tão brutal quanto seu pai e seu avô foram no passado. Ao mesmo tempo em que permitiu liberdade econômica maior, ele vem procurando isolar o país mais que nunca, reforçando a segurança na fronteira com a China e intensificando as punições para quem ousa tentar atravessá-la. Dentro da Coreia do Norte a liberdade de expressão e de pensamento ainda não passa de uma miragem.

Em seis meses de entrevistas conduzidas na Coreia do Sul e Tailândia, o "Washington Post" conversou com mais de 25 norte-coreanos de diferentes profissões e ocupações que viveram no país sob o regime de Kim Jong-un e conseguiram escapar.

Em churrascarias, quartos de hotel e apartamentos pequenos, esses refugiados ofereceram o relato mais completo feito até hoje do cotidiano na Coreia do Norte e como mudou, ou não, desde que Kim tomou o lugar de seu pai, Kim Jong-il, no final de 2011.

Muitos desses refugiados vieram da parte norte do país, que faz fronteira com a China —a região da Coreia do Norte onde a vida é mais difícil e onde as pessoas têm mais conhecimento do mundo externo situado do outro lado do rio— e fazem parte do segmento relativamente pequeno da população que está disposto a assumir os riscos envolvidos na tentativa de fuga.

Partes de seus relatos não puderam ser verificados de modo independente, devido à natureza sigilosa do regime, e os nomes dos entrevistados não foram revelados para proteger seus familiares que ainda vivem na Coreia do Norte.

Eles foram apresentados ao "Washington Post" por grupos que ajudam norte-coreanos que escaparam do país, entre eles as organizações No Chain for North Korea, Woorion e Liberty in North Korea.

Ao falar de suas experiências pessoais, incluindo a tortura e a cultura da vigilância, eles revelaram as dificuldades do cotidiano no regime de Kim Jong-un.

Eles traçam um retrato de um Estado antes comunista que está quase falido, com sua economia estatal paralisada. Hoje os norte-coreanos estão se virando como podem, ganhando dinheiro de maneiras empreendedoras e muitas vezes ilegais. Há apenas alguns poucos problemas na Coreia do Norte hoje em dia que o dinheiro não pode resolver.

À medida que a vida na Coreia do Norte vem mudando, também estão mudando as razões que levam as pessoas a escapar.

Com frequência crescente, os norte-coreanos fogem de seu Estado totalitário não por estarem passando fome, como fizeram durante os 15 anos seguintes a uma carestia generalizada e devastadora em meados dos anos 1990. Hoje eles deixam o país porque estão desiludidos.

A atividade de mercado está explodindo, e ela é acompanhada pelo fluxo de informação, quer seja na forma de conversas com comerciantes que vão até a China ou de telenovelas carregadas em pendrives. E isso leva muitos norte-coreanos a tecer sonhos diferentes dos sonhos do passado.

Alguns deixam a Coreia do Norte porque querem que seus filhos tenham educação melhor. Outros partem porque seus sonhos de sucesso e riqueza no sistema norte-coreano estão sendo frustrados. E alguns estão deixando o país porque querem poder se expressar livremente.

UM NOVO KIM NO COMANDO DO PAÍS

Agência de notícias KCNA - 19 de dezembro de 2011 - "Postado no primeiro plano da revolução coreana está Kim Jong-un, grande sucessor da causa revolucionária da Juche (a ideologia da autonomia) e destacado líder de nosso partido, exército e povo."

O entregador de carne, hoje com 23 anos, de Undok. Escapou em 2014:
"Kim Jong Un chegou ao poder no mesmo ano em que eu terminei o segundo grau. Eu tinha grandes esperanças em relação a ele. Ouvi falar que ele estudara no exterior, na Suíça. Pensei que ele seria muito diferente de seu pai."

A mãe jovem, hoje com 29 anos, de Hoeryong. Escapou em 2014:
"Eu pude ver o quão jovem ele era, e esperava que as coisas pudessem mudar para melhor. Nós recebemos algumas rações de nossa associações de moradores na época em que ele assumiu —inclusive tinham carne e peixe".

A aluna de pré-escola, hoje com 7 anos, de Hoeryong. Escapou em 2014:
"Me lembro de ele ser muito gordo. Ele tinha um rosto gordão, como um porco."

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Quando o regime começou a preparar a sucessão de Kim, divulgou uma canção que todo o mundo no país teve que aprender, intitulada "Passos". A ideia era que Kim estava seguindo os passos de seu pai e ia conduzir o país a um futuro glorioso.

Passos

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O homem do dinheiro, hoje com 43 anos, de Hyesan. Escapou em 2015:
"Ouvimos a canção 'Passos' e nos mandaram aprendê-la de cor, então soubemos que ele seria o líder depois de Kim Jong Il. Nos disseram que ele era um grande homem, que aos 5 anos de idade já sabia andar a cavalo e com 3 anos já atirava com espingarda. É claro que não acreditávamos nisso, mas, se déssemos risada ou fizéssemos algum comentário, seríamos mortos."

O estudante universitário, hoje com 37 anos, de Sariwon. Escapou em 2013:
"Eu estava no segundo ano da faculdade quando essa pessoa nos foi apresentada como nosso novo líder. Achei que fosse brincadeira. Eu e meus amigos mais íntimos o chamávamos de bostinha. Todo o mundo pensa isso, mas você só pode dizer a seus pais e seus amigos mais íntimos se souber que eles concordam."

O traficante de drogas, hoje com 46 anos, de Hoeryong. Escapou em 2014:
"Criei algum tipo de fantasia na minha cabeça sobre Kim Jong-un. Pelo fato de ele ser tão jovem, pensei que ele ia abrir a porta da Coreia do Norte, mas depois de ele assumir o poder e eu viver três anos sob seu governo, a vida ficou mais difícil"

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O DINHEIRO FALA MAIS ALTO
A Coreia do Norte é teoricamente um reduto do socialismo, um país onde o Estado provê a população de tudo, incluindo habitação, saúde, educação e empregos. Na realidade, a economia estatal mal funciona mais. As pessoas trabalham nas fábricas e nos campos, mas há pouco para fazerem e elas recebem quase nada pelo trabalho.

Uma economia privada dinâmica surgiu a partir da necessidade; as pessoas encontram maneiras de ganhar dinheiro por conta própria, quer seja vendendo tofu feito em casa ou traficando drogas, contrabandeando do exterior pequenos aparelhos de DVD com telinhas, conhecidos como "notels", ou extorquindo propinas.

O estudante universitário:
"Oficialmente falando a Coreia do Norte tem uma economia centralmente planejada, mas hoje a vida do povo gira mais em torno do mercado. Ninguém mais espera que o governo forneça nada. Todo o mundo precisa encontrar seu próprio jeito de sobreviver."

A cabeleireira, hoje com 23 anos, de Hyesan. Escapou em 2016:
_"Fui obrigada a abandonar a faculdade de pedagogia aos 19 anos porque meu pai adoeceu, então precisei começar a trabalhar. Comecei a arrumar o cabelo das pessoas na minha casa. Todas as mulheres queriam fazer permanente. Eu cobrava 30 yuans (chineses) por uma permanente normal ou 50 yuans por uma permanente feita com produtos melhores. Mas era difícil ganhar dinheiro, mesmo assim. [Trinta yuans equivalem a mais ou menos US$4,50.]_

A trabalhadora rural, hoje com 46 anos, de Hoeryong. Escapou em 2014.
"Morávamos no centro da cidade, mas alugávamos um terreno no sopé das montanhas e ali plantávamos milho. Nas épocas do plantio e da colheita, acordávamos às 4h e caminhávamos três horas para chegar à plantação. A gente fazia uma pequena pausa para o almoço e um lanche, depois trabalhava até as 20h e então voltava para casa a pé. O mais difícil era arrancar o mato, porque tinha que ser feito tudo à mão. Além disso, comprávamos feijão de soja na feira e fazíamos tofu, que vendíamos em casa. Nosso lucro não chegava a 5.000 wons (US$0,60 pelo câmbio paralelo) por dia. Mas, como o preço da soja varia, às vezes não lucrávamos nada."

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Os norte-coreanos aprenderam a ser empreendedores na época da carestia generalizada, quando tiveram que ganhar dinheiro para sobreviver. Enquanto os homens eram obrigados a continuar comparecendo para o trabalho em fábricas ociosas, as mulheres faziam macarrão de milho e guardavam um pouco para a família, mas vendiam o resto para poder comprar mais milho no dia seguinte.

Crianças de rua roubavam tampas de bueiro para vender como ferro velho. Começaram a surgir feiras de rua. Os norte-coreanos diziam, brincando, que nessas feiras se podia comprar de tudo, menos chifres de gato. Hoje em dia provavelmente já se pode comprar chifres de gato, também.

Mercado

O comerciante de feijão, hoje com 23 anos, de Hyesan. Escapou em 2014:
"Eu tinha uma tia em Pyongyang que vendia feijão na feira na cidade. Eu comprava o que ela precisava de diversos lavradores e mandava para ela. Pagava pessoas para ensacar o feijão, pagava carregadores para levar os sacos à estação e colocar no trem. É preciso subornar as pessoas para facilitar as coisas. Meu tio está no exército, então isso já garantia uma proteção para o negócio de minha tia. É claro que minha tia era a provedora principal da casa. Na Coreia do Norte, são as mulheres que podem ganhar dinheiro de verdade."

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Dezenas de milhares de norte-coreanos hoje trabalham fora do país, em serrarias, confecções de roupas e obras de construção na China, Rússia e outros países, ganhando em divisas. Dois terços do que eles recebem geralmente ficam com o regime, e eles são autorizados a guardar o resto.

O trabalhador da construção, hoje com 40 anos, de Pyongyang. Escapou em 2015:
"Eu queria ganhar dinheiro para minha família e comprar uma casa, então paguei US$ 100 de propina para conseguir um emprego na construção no exterior. Me mandaram para São Petersburgo. Morávamos na obra e trabalhávamos das 8h às 20h, ou às vezes até a meia-noite no verão, depois voltávamos ao dormitório para comer. Trabalhávamos sete dias por semana, mas aos domingos podíamos sair mais cedo —às 19h—, e isso era bom. Meu objetivo todo ao ir para lá era ganhar muito dinheiro e voltar para casa com orgulho do que eu tinha conseguido. Ainda me recordo da primeira vez que me pagaram. Foram mil rublos. Quando terminei de trabalhar, às 22h, fui à loja e vi que uma cerveja custava 27 rublos. Pensei, 'uau, estou rico'."

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À medida que a economia e as regras que a regem vão mudando, surgem mais áreas pouco definidas que podem ser exploradas. Isso significa que o comércio e as atividades ilegais também estão em franco crescimento.

O traficante de drogas:
"Fiz muitas coisas que eu não devia. Trabalhei como mediador, transferindo dinheiro e fazendo a conexão entre pessoas na Coreia do Norte e pessoas na Coreia do Sul, através de telefonemas. Organizei encontros delas na China. Contrabandeei antiguidades para fora da Coreia do Norte e as vendi na China. Vendi ginseng e faisões para a China. E trafiquei metanfetaminas. Oficialmente eu era operário de fábrica, mas paguei subornos para não precisar ir ao trabalho. Se você não faz assim na Coreia do Norte, você não ganha nada."

O médico, hoje com 42 anos, de Hyesan. Escapou em 2014:
"O salário pago a médicos era de 3.500 wons mensais. Era menos que o preço de um quilo de arroz. Então é claro que ser médico não era meu trabalho principal. Meu trabalho principal era de contrabandista, que eu fazia à noite. Eu mandava remédios de ervas da Coreia do Norte para a China, e com o dinheiro que ganhava, importava eletrodomésticos e eletrônicos para a Coreia do Norte. Panelas para arroz, 'notels', monitores de LCD, esse tipo de coisa."

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Das maiores cidades aos menores povoados, hoje sempre existe algum tipo de construção que abriga uma feira onde as pessoas podem vender suas mercadorias e ficar com o que ganham. Algumas dessas feiras são operadas e sancionadas pelo Estado; outras são improvisadas. O regime legalizou as feiras de modo retroativo.

Hoje o dinheiro é necessário para quase tudo, mesmo para os elementos da vida comunista que o regime de Kim se gaba de dar à população, como habitação e escolas. A corrupção e o pagamento de propinas viraram endêmicos, solapando o regime pelo fato de afrouxar os controles e criar incentivos que nem sempre coincidem com as prioridades de Kim.

A trabalhadora rural:
"Tecnicamente falando, não é preciso pagar para frequentar a escola, mas os professores lhe dizem que é preciso dar uma certa quantidade de feijão ou de peles de coelho que possam ser vendidas. Se o aluno não o faz, ele leva bronca dos professores continuamente, e é por isso que os estudantes param de ir à escola. As crianças são prejudicadas porque os pais não têm condições de pagar o que pedem."

A mãe jovem:
"Eu pagava às professoras da escola da minha filha para que cuidassem dela melhor que dos outros. Eu dava a elas 120 mil won de uma vez -o suficiente para comprar 25 quilos de arroz-duas vezes por ano. Se você não paga aos professores, eles não fazem o menor esforço."

O pescador, hoje com 45 anos, de Ryongchon. Escapou em 2017:
"Vivi sob os três Kim, mas a vida não estava melhorando para nenhum de nós. Todos temos que pagar pelas obras de Kim Jong Un, como por exemplo a rua Ryomyong (um conjunto residencial em Pyongyang). Tivemos que contribuir 15 mil wons coreanos por família (mais de quatro meses de salário) ao governo por aquela rua."

O traficante de drogas:
"Meu negócio principal era a venda de cristal (metanfetamina). Acho que 70% a 80% dos adultos de Hoeryong consumiam isso. Meus fregueses eram pessoas comuns. Policiais, agentes de segurança, membros do partido, professores, médicos. O cristal é um ótimo presente para dar em festas de aniversário ou formaturas do colegial. Ela faz você se sentir bem, ajuda a reduzir o estresse e ajuda muito nas relações entre homens e mulheres. Minha mãe tem 76 anos e estava usando porque tem pressão baixa. Funcionava muito bem. Um monte de policiais e agentes de segurança vinham para minha casa para fumar, e é claro que eu não cobrava deles —eles eram a minha proteção. Eles vinham na hora do almoço e faziam uma 'escala' na minha casa. O chefe da polícia secreta na minha área praticamente vivia na minha casa."

Dominic Bugatto

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A capacidade de ganhar dinheiro, às vezes muito dinheiro, por meios legais e ilegais vem gerando desigualdade visível em um país que há anos se diz um paraíso socialista igualitário.

Essa disparidade pode virar fonte de insatisfação. Comerciantes de feijão, traficantes de drogas e muitos outros têm a possibilidade de ganhar a vida relativamente bem.

As pessoas que trabalham apenas em empregos oficiais, quer seja numa criação de avestruzes pertencente ao Estado ou num ministério governamental em Pyongyang, ganham apenas alguns dólares por mês e recebem poucas rações alimentares para complementar seus salários miseráveis.

O jovem endinheirado, agora com 20 anos, de Chongjin. Escapou em 2014:
"Em 2013 foram abertos rinques de patinação, e a grande onda passou a ser os patins roller. A gente os carregava pendurados dos nossos ombros a caminho do rinque —era um símbolo de status, um sinal de que você tinha dinheiro. Eu comprei meus patins no mercado. Eram cor-de-rosa e custaram 200 yuans chineses. É o mesmo preço que 30 quilos de arroz. É um dinheiro impensável para garotos pobres."

O trabalhador da construção :
"Passávamos períodos longos sem ser pagos. Uma vez passei seis meses sem receber salário nenhum. Vivíamos num contêiner de navio na obra. Nos davam arroz, repolho e um ovo por pessoa por dia, e tínhamos um fogãozinho elétrico no contêiner no qual podíamos cozinhar. Precisávamos de proteína porque nosso trabalho era tão duro, então começamos a comprar couro de porco na feira, que era barato. O dia do banho era uma ocasião especial. Mas quando você ia à casa de banhos, faltava ao trabalho. Cheguei a passar dois meses sem tomar banho, uma vez. A gente não dava importância. Era assim que vivíamos."

Dominic Bugatt

O jovem endinheirado:
"Os celulares valem muito. Para poder comprar um smartphone, é preciso ser de família rica. É claro que havia uns garotos pobres no meu colégio, mas eu não andava com eles. Eu tinha um smartphone Arirang que custou US$400. Quando um garoto vinha conversar comigo, eu olhava o telefone dele. Se fosse um daqueles telefones antigos com teclado, eu não me interessava em bater papo."

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As feiras são pontos de distribuição não apenas de mercadorias, mas também de informação. Conversa, rumores, mídia estrangeira ilícita.

A trabalhadora rural:
"As mulheres ganham a vida na feira. Ficam sentadas em suas barracas e conversam. A feira é um ótimo lugar para se informar sobre o mundo de fora."

A técnica de telefonia, hoje com 49 anos, de Hoeryong. Escapou em 2013:
"Eu assistia a um monte de filmes e telenovelas estrangeiras contrabandeados, que comprava na feira em pendrives e então ligava na minha televisão. Pessoas que vendem coisas normais, tipo pilhas, arroz ou qualquer outra coisa, escondem pendrives debaixo do balcão. Quando você vai à feira, pergunta aos vendedores: "Tem alguma coisa deliciosa hoje?" Esse é o código. Os pendrives são ótimos também porque são muito fáceis de esconder, e, se você for pego, basta quebrar o pendrive."

Dominic Bugatto

O pescador:
"No passado, se você visse filmes chineses em pendrives, tudo bem. Você só era mandado a um campo de trabalho se fosse pego com filmes americanos ou sul-coreanos. Mas hoje, sob Kim Jong-un, você é enviado a um campo de trabalhos forçados também se é flagrado assistindo a filmes chineses. Hoje em dia a polícia, os serviços de segurança e os funcionários do governo estão vivendo melhor. Quanto mais pessoas eles prendem, mais dinheiro recebem."

A detenta adolescente, hoje com 22 anos, de Hyesan. Escapou em 2013:
"Eu gostava do jeito que as mulheres estavam sendo valorizadas. A Coreia do Norte é uma sociedade muito orientada para os homens. Os homens nunca se dão ao trabalho de cuidar das mulheres. E eu gostava de ver as casas e os carros elegantes deles."

A sanfoneira, hoje 25 anos, de Hamhung. Escapou em 2015:
"Minha mãe vendia eletrodomésticos na feira, então tinha um jeito de conseguir DVDs. Eu assistia a filmes chineses, indianos e russos e vi muitas telenovelas sul-coreanas. Pensava que, se eu conseguisse chegar à Coreia do Sul, poderia fazer qualquer coisa que quisesse."

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REPRESSÃO E DESILUSÃO
É impossível exagerar a onipresença do culto à personalidade que cerca os Kim na Coreia do Norte. O líder fundador Kim Il-sung, seu filho Kim Jong-il e seu neto, o líder atual, Kim Jong-un, formam uma espécie de Santíssima Trindade na Coreia do Norte. É impossível fazer críticas a eles ou questionar o sistema —não sem colocar em risco sua liberdade e a de toda sua família. Quem o faz arrisca sua própria vida.

A aluna de pré-escola:
"Eu aprendia canções que falavam do general, da família Kim e de como Kim Il-sung foi grande."

"No dia do aniversário de Kim Jong Un ganhávamos presentes: doces, bolachas, chiclete e arroz inflado. Eu ficava tão grata a ele por me dar aqueles doces todos. A gente se levantava na sala de aula e dizia 'obrigado, general Kim Jong-un'".

Dominic Bugatto

O estudante universitário:
"Tínhamos 90 minutos por dia de educação ideológica. Havia história revolucionária e aulas sobre Kim Il-sung, Kim Jong-il, Kim Jong-un. Claro que nos ensinavam a razão porque precisávamos de armas nucleares e nos diziam que precisávamos fazer sacrifícios no nosso cotidiano para que eles pudessem construir essas armas e proteger nosso país, manter a nação em segurança. Eu estava farto de chamar todo o mundo de 'camarada'. Não estava nem aí para nada daquilo."

A mãe jovem:
"Todo o mundo sabia que Kim Jong-il e Kim Jong-un eram mentirosos, que tudo era culpa deles, mas era impossível expressar qualquer oposição, porque vivíamos estreitamente vigiados. Se uma pessoa ficar bêbada e chamar Kim Jong-un de filho da puta, você nunca mais verá a cara dessa pessoa."

O médico:
"É como uma religião. Desde que nasce você aprende sobre a família Kim, aprende que eles são deuses e que você precisa ser absolutamente obediente à família Kim. As elites são bem tratadas e por isso elas garantem a estabilidade do sistema. Mas para todo o resto da população é um reinado de terror. A família Kim usa o terror para manter as pessoas com medo, e com isso é impossivel promover qualquer encontro social, o que dirá um levante."

O trabalhador da construção:
"Tínhamos sessões de educação em que voltávamos para o prédio principal e íamos para um salão grande com retratos dos líderes. Todos tinham que fazer uma reverência e comprar buquês de flores para deitar diante dos retratos. O chefe, que é membro do partido, fazia um discurso. Nos falavam de como Kim Jong-un tinha feito isso ou aquilo, que ele trabalhava arduamente pelo partido, a nação e o povo. Eu acreditava naquele discurso até chegar a era de Kim Jong-un, mas o exagero era demais. Não fazia sentido."

O homem do dinheiro:
"Todos os meses chegava uma instrução especial sobre Kim Jong-un. Ela vinha de Pyongyang para as associações de bairro. Nos diziam que Kim Jong-un queria saber de tudo para que pudesse cuidar bem de todos, ajudar a todos. ninguém acreditava, porque, se Kim Jong-un sabia que não tínhamos eletricidade e comíamos arroz de milho [um arroz de imitação feito de farinha de milho], por que não estava fazendo nada para ajudar?"

O comerciante de feijão:
"Contavam uma história assim: que Kim Il-sung pediu a Kim Jong-un para lhe buscar uma maçã. Kim Jong-un pediu uma pá porque queria levar a macieira inteira. Era o tipo de brincadeira criada pela polícia secreta. Em vez de apenas ensinar ao povo o que vinha do alto, eles criavam histórias como essa (sobre devoção ao regime) porque achavam que sua propaganda circularia melhor se circulasse como rumores, que seria mais convincente."

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A Coreia do Norte opera como um imenso Estado vigilante, tendo como espinha dorsal um tenebroso departamento de segurança de Estado conhecido como Bowibu. Seus agentes estão em toda parte e operam com impunidade.

O regime também opera como uma espécie de sistema de vigilância de bairro. Cada distrito de cada cidade é dividido em grupos de bairro formado por 30 ou 40 famílias, cada um deles com um líder responsável por coordenar a vigilância no bairro e por incentivar as pessoas a delatar.

A mãe jovem:
"As pessoas de cada associação de bairro vivem espionando o que as outras pessoas estão fazendo. Se uma família parece estar vivendo melhor, todos os vizinhos tentam descobrir de onde está vindo seu dinheiro. Se uma pessoa parece estar vivendo bem, os vizinhos ficam com inveja daquela casa. Não é preciso pedir a ninguém para derrubar aquela família rica e fazê-la perder seu dinheiro. Quando você vê outra família perder sua casa, você acha bom. Por isso é muito importante não deixar ninguém ver que você tem dinheiro."

A trabalhadora rural:
"É claro que eu pensava no mundo externo, mas se você dissesse 'eu gostaria de ir à China ou Coreia do Sul', um informante poderia lhe denunciar aos serviços de segurança. Você pensa isso na sua cabeça, mas não pode colocar em palavras. Nunca dá para saber quem pode lhe dedurar. Ouvíamos e víamos com frequência que os chineses têm dinheiro, porque chineses vinham à Coreia do Norte vender coisas. Então achávamos que seria bom viver na China."

O jovem endinheirado:
"Havia líderes juvenis que patrulhavam por aí, à procura de coisas que não deveríamos estar fazendo. Se você usasse jeans ou calças skinny, se fizesse as unhas ou deixasse o cabelo comprido demais, podia ter problemas. Esses líderes às vezes examinavam nossos telefones para ver se tínhamos alguma música da Coreia do Sul. Eu mesmo fui pego por isso, mas me livrei comprando uma caixa de 20 cervejas para os caras."

Dominic Bugatto

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Para quem incorresse em problemas com o regime que não pudessem ser resolvidos com dinheiro, o castigo podia ser brutal.

Os acusados de crimes econômicos -que podem envolver qualquer tipo de empreendimento privado-são mandados para prisões e muitas vezes postos para fazer trabalho forçado, incluindo a construção de estradas.

Mas os acusados de traição à nação, uma categoria ampla que abrange questionar a família Kim ou o sistema, acabam em campos de prisioneiros políticos onde são forçados a trabalhar em minas e passam fome.

Dentro do sistema norte-coreano de culpa por associação, não são raros os casos em que três gerações de uma família de "traidores" acabem nesses campos de concentração.

A detenta adolescente:
"Quando eu tinha 16 anos, estava passando um tempo na casa da minha avó. Bateram na porta tarde da noite. Dois agentes da polícia secreta me levaram à delegacia e me perguntaram: 'Onde estão seus pais?' Falei que eu não sabia. Eles tinham desaparecido, e desconfio que os colegas de negócios de minha mãe, quando se deram conta disso, colocaram a culpa de um monte de coisas nela, dizendo que ela era a arquiteta de uma grande operação de contrabando. Os policiais gritaram comigo: 'Você é igual à sua mãe. Também deve ter fantasias sobre a China.' Eles me deram uns cinco tapões no rosto."

A técnica de telefonia:
"A primeira vez que fui para a prisão foi porque fui pega ajudando pessoas a fazer ligações para seus parentes na Coreia do Sul. Me condenaram a quatro meses de trabalhos forçados, construindo uma estrada na encosta de uma montanha que eles disseram que seria necessária caso houvesse uma guerra. Os homens cavavam e as mulheres tinham que carregar a terra e as pedras."

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Pessoas que escaparam das tenebrosas prisões políticas da Coreia do Norte falaram do tratamento brutal recebido ao longo de anos, incluindo métodos de tortura medievais com correntes e fogo e de as mulheres seram submetidas a abortos à força pelos métodos mais cruéis.

Ativistas dos direitos humanos disseram que a tortura parece ter diminuído um pouco sob o governo de Kim Jong-un. Mas espancamentos cruéis e certos tipos de tortura —incluindo obrigar um detento a passar períodos longos em posições de sofrimento— são comuns no sistema carcerário norte-coreano, assim como execuções públicas.

A detenta adolescente:
"Fui interrogada de novo pela polícia secreta. Queriam saber sobre os negócios de minha mãe. Estavam me dando tapas no rosto outra vez. Eles sempre nos pegam no rosto. Fui espancada brutalmente daquela vez. Me jogaram contra a parede com tanta força que minha cabeça ficou sangrando. Ainda tenho dores de cabeça de vez em quando. Enquanto eu estava lá, me obrigaram a ficar sentada com as pernas cruzadas, os braços sobre os joelhos e a cabeça sempre baixa. Se você se mexe, nem que seja um pouquinho, ou tenta esticar as pernas, eles gritam com você e lhe batem. Eu tinha que ficar naquela posição por horas a fio."

O homem do dinheiro:
"Em 2015 uma transferência de dinheiro deu errado -a mulher para quem passei o dinheiro foi pega e me delatou. Fui preso e passei dois meses em detenção. Não me trataram como ser humano: me batiam, me obrigavam a sentar em posições incômodas em que não podia levantar a cabeça. Duas vezes me deram tapas no rosto e me chutaram durante um interrogatório, mas não me espancaram com muita violência. Talvez porque eu não era um joão-ninguém —talvez eles tivessem medo que eu conhecesse alguém que pudesse revidar contra eles."

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A privação de alimentos muitas vezes faz parte do castigo, mesmo no caso de crianças. A adolescente de 16 anos perdeu seis quilos na prisão. Saiu pesando apenas 40 quilos.

A detenta adolescente:
"Levantávamos às 6h todos os dias e nos deitávamos às 23h, e entre a hora de levantar e a de deitar ficávamos o tempo todo trabalhando, carregando pás de cimento ou sacos, exceto pela hora do almoço. O almoço geralmente era milho cozido no vapor. Eu tinha tanto medo que não conseguia comer. Eu chorava muito. Não tinha vontade de viver."

A técnica de telefonia:
"Apesar de trabalharmos tão duro no campo de prisioneiros, a única comida que recebíamos era uma porção minúscula de arroz de milho e uma batata pequena. Quando saí de lá, eu estava tão desnutrida que mal conseguia caminhar."

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É essa rede de prisões e campos de concentração, somada à ameaça de execução, que impede as pessoas de denunciar o que acontece. Na Coreia do Norte não existe dissensão organizada, não há oposição política.

O traficante de drogas:
"Se você criar problemas, sua família inteira será castigada. Por isso as pessoas não querem criar problemas. Se eu for punido pelo que fizer de errado, isso é uma coisa. Mas é minha família inteira que ficaria em risco se eu fizesse alguma coisa. Já vimos que Kim Jong Un matou seu próprio tio, então sabemos que ele é capaz de ser implacável. É por isso que não pode haver uma insurreição na Coreia do Norte."

O estudante universitário:
"O segredo da sobrevivência da Coreia do Norte é o reinado do terror. Por que você acha que há execuções públicas no país? Por que você acha que eles bloqueiam todas as comunicações? Por que você acha que norte-coreanos vão embora, sabendo que nunca mais voltarão a ver suas famílias? Isso mostra como as coisas são ruins. Todos nossos direitos como pessoas nos foram tirados."

A técnica de telefonia:
"Se a pessoa abrir a boca para criticar o sistema, será presa imediatamente. E, se você faz algo de errado, três gerações de sua família serão castigadas. Em 2009 ouvi dizer que algum tipo de golpe seria lançado em Chongjin e que todos os envolvidos foram executados. Quando você ouve falar de casos como esses, é claro que fica com medo. Então em vez de tentar fazer alguma coisa para mudar o sistema, é melhor ir embora, simplesmente."

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Algumas pessoas de fato vão embora, mas não são muitas. É incrivelmente perigoso e logisticamente difícil passar pelos guardas de fronteira e o arame farpado. Não se sabe quantos milhares de norte-coreanos atravessam a fronteira da China todos os anos.

Alguns deles permanecem na China, quase sempre mulheres jovens que são vendidas a homens chineses pobres da zona rural que não conseguem uma esposa de qualquer outra maneira. Alguns são capturados e enviados de volta —com a certeza de que serão postos na prisão.

A esposa repatriada, hoje com 50 anos, de Nampo. Escapou pela última vez em 2016:
"Eu tinha vivido 20 anos na China, mas alguém deve ter me denunciado. Fui mandada de volta à Coreia do Norte e passei dois anos e meio num campo de prisioneiros. (Depois de ela ter partido novamente para a China), eu sabia que não podia mais ser repatriada. Achei que aquilo seria o fim de minha vida."

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Mas a cada ano, cerca de mil norte-coreanos conseguem chegar à Coreia do Sul. Nos 20 e poucos anos passados desde a fome generalizada, apenas 30 mil norte-coreanos conseguiram chegar à ponta sul da península.

No final dos anos 1990 e início da década de 2000, quase todos os norte-coreanos que fugiram o fizeram devido à fome e necessidade econômica. Mas a explosão dos mercados melhorou a vida de muitos norte-coreanos.

Hoje mais pessoas andam deixando o país por estarem desiludidas com o sistema, não porque não tenham meios de alimentar suas famílias.

A sanfoneira:
"Eu era ambiciosa. Queria me filiar ao partido e desfrutar de todas as oportunidades que acompanham essa condição. Meu sonho era ganhar muito dinheiro e ser funcionária pública de alto escalão. A origem familiar da pessoa significa muito na Coreia do Norte. Como eu tinha família na China, percebi que isso me impediria de correr atrás dos meus sonhos. Deixei o país porque não tinha a liberdade de fazer o que eu queria."

O comerciante de feijão:
"Eu queria subir na vida, queria fazer faculdade, mas, pelo fato de minha mãe ter fugido para a China, parecia que eu não poderia avançar mais. Parecia que eu ficaria para sempre na Coreia do Norte, onde estava. Eu poderia ter me mudado, vivido, sem problemas, mas senti que eu não tinha futuro na Coreia do Norte. Foi quando resolvi vir embora."

O entregador de carne :
"Na escola nos disseram que podíamos fazer o que quiséssemos na vida. Mas, depois me formar, percebi que não era verdade e que eu estava sendo castigado pelos erros de outros. Percebi que eu não poderia sobreviver na Coreia do Norte. Então passei dois anos procurando um jeito de fugir. Quando eu pensava em escapar, isso me dava um ânimo psicológico."

O médico:
"Eu esperava poder trabalhar como médico no exterior, no Oriente Médio ou na África. Mas, para poder trabalhar fora do país, é preciso passar por um processo de verificação de segurança para averiguar se você segue a linha ideológica do regime e não vai desertar. Esse é um problema que dinheiro não resolve, e foi onde fui barrado. Fiquei furioso, fiquei muito, muito aborrecido. Xinguei nossa sociedade. Sou uma pessoa altamente capacitada e eu era membro do partido, mas nem assim fui aprovado."

O trabalhador da construção :
"Trabalhei três anos e meio, mas durante esse tempo só ganhei US$2.000. Podíamos trabalhar no máximo cinco anos no exterior. Eu queria economizar US$10 mil e voltar para casa com orgulho. Percebi que isso não ia acontecer, então comecei a procurar um jeito de fugir."

O estudante universitário:
"Eu estava revoltado com o sistema. Não tinha liberdade para falar o que quisesse, viajar para onde quisesse ou mesmo vestir a roupa que quisesse. Era como viver numa prisão. Éramos monitorados o tempo todo pelo líder do bairro, pela polícia normal, pela polícia secreta. Se você me perguntar qual é a coisa pior da Coreia do Norte, direi: é nascer ali."

*

A SAÍDA

A noiva:
Depois de se formar no ensino médio, ela passou dois anos trabalhando nos milharais, mas depois disso simplesmente ficava sentada em casa. Então, quando soube que uma amiga dela tinha sido vendida a um chinês para ser sua esposa, pediu para ser apresentada ao mediador para que também ela pudesse ser vendida. Na China ela poderia pelo menos ganhar dinheiro. Ela acaba de chegar à Coreia do Sul.

O entregador de carne:
Como sua mãe era uma "traidora" que tinha desertado, indo para a Coreia do Sul, ele foi impedido de fazer faculdade ou entrar para as forças armadas. Em vez disso, foi obrigado a fazer trabalhos braçais com criminosos e miseráveis, recebendo praticamente nada de salário. Para ganhar dinheiro, entregava carne do açougue de seu pai a restaurantes locais. Hoje é estudante universitário na Coreia do Sul.

A mãe jovem, hoje com 29 anos, de Hoeryong. Escapou em 2014:
Ela veio de uma família boa, mas seu pai era violento. Casou-se jovem, com um caminhoneiro, e eles viviam confortavelmente na Coreia do Norte. Mas suas tias moravam na Coreia do Sul e lhe disseram que ela devia levar a irmã delas, sua mãe, para ficar com elas. Então ela desertou com seu marido e suas filhas, uma de 4 anos e outra com 1 mês de idade. Hoje ela é funcionária de escritório na Coreia do Sul.

A aluna de pré-escola:
Ela não se lembra de muita coisa de sua vida na Coreia do Norte, apenas de suas amigas da escola e algumas músicas que elas cantavam. Hoje ela estuda numa escola primária na Coreia do Sul.

O homem do dinheiro:
Ele era guarda da fronteira, mas subornou pessoas para conseguir deixar o emprego. Então começou a trabalhar como intermediário em transferências financeiras, transferindo dinheiro de famílias na China ou Coreia do Sul para parentes na Coreia do Norte, sempre em troca de uma taxa polpuda. Mas um dia uma transação deu errado. Uma freguesa na Coreia do Norte foi flagrada com um valor alto em moeda chinesa e o delatou. Hoje ele trabalha numa fábrica na Coreia do Sul.

O estudante universitário:
Era filho de uma família comum, mas tinha sonhos grandes. Ele vivia pensando em fugir para a China e virar um profissional de sucesso, fazendo um trabalho que o deixasse realizado. Um dia seus pais lhe disseram que devia correr atrás de seus sonhos. Então ele o fez. Hoje é repórter na Coreia do Sul.

O traficante de drogas:
Depois de pagar propinas para poder abandonar seu trabalho numa fábrica na época da carestia, ele se envolveu em vários tipos de atividades ilegais, desde o contrabando de antiguidades até o tráfico de metanfetamina na China e Coreia do Norte. Hoje é trabalhador da construção civil na Coreia do Sul.

A cabeleireira:
Ela era estudante de uma faculdade de pedagogia, mas precisou deixar os estudos aos 19 anos para ganhar dinheiro para a família, depois de seu pai adoecer. Começou a arrumar cabelos de freguesas em casa, mas teve a oportunidade de trabalhar num restaurante na China, ganhando muito mais. Então ela partiu com um intermediário. Mas descobriu que não havia restaurante algum. Em vez disso, foi vendida a um chinês por US$12 mil. Ela acaba de chegar à Coreia do Sul.

A trabalhadora rural:
Depois que seu marido fugiu do país, ela foi obrigada a se sustentar sozinha. Produzia tofu (queijo de soja), cultivava milho numa roça situada a horas de caminhada de sua casa, criava porcos em seu quintal. Era difícil, mas ficou ainda mais difícil quando ela machucou as costas e teve dificuldade em continuar a trabalhar. Ela ainda tem problemas nas costas e não pode trabalhar na Coreia do Sul.

O comerciante de feijão:
Filho de uma família privilegiada, ele vivia bem até seu avô ter problemas com o regime e sua mãe desertar. Então começou a trabalhar como comerciante, indo buscar feijão junto aos produtores e encaminhando-o à sua tia, que o vendia em feiras em Pyongyang. Hoje é estudante universitário na Coreia do Sul.

O trabalhador da construção :
Ele trabalhou e pagou suborno para conseguir um emprego na construção na Rússia, um trabalho potencialmente lucrativo. Mas, apesar de trabalhar muitas horas por dia, frequentemente passava meses sem ser pago. Assistir à televisão da Coreia do Sul lhe abriu os olhos para as mentiras da Coreia do Norte. Hoje ele trabalha na Coreia do Sul.

O médico:
Ele trabalhava em um hospital em Hyesan e era filiado ao Partido dos Trabalhadores. Sonhava em ser enviado ao Oriente Médio ou África, onde poderia ganhar muito mais dinheiro. Mas foi impedido de deixar o país. Hoje trabalha como médico num hospital da Coreia do Sul.

O pescador:
Ele ganhava a vida bem, pescando para uma empresa estatal e aproveitando o fato de ter acesso à China para contrabandear mercadorias de lá. Mas sua exposição ao capitalismo chinês e aos programas de rádio sul-coreanos o levou a querer abandonar o país. Ele acaba de chegar à Coreia do Sul.

A técnica de telefonia:
Usando seu celular chinês, ela organizava telefonemas entre norte-coreanos e seus parentes fora do país, ou na China ou na Coreia do Sul. Mas foi pega e obrigada a fazer trabalhos forçados na prisão. Foi capturada uma segunda vez, mas pagou uma propina enorme para ser solta. Ela fugiu e foi capturada novamente. Hoje trabalha na Coreia do Sul.

A detenta adolescente:
Ela era estudante secundarista e estava vivendo com sua avó em outra cidade quando o resto de sua família fugiu de repente para a China, aparentemente porque um dos negócios de sua mãe deu errado. Foi presa, torturada e obrigada a fazer trabalhos forçados. Hoje é estudante universitária na Coreia do Sul.

A sanfoneira:
Ela se ofereceu voluntariamente para servir o exército, tentando melhorar de vida na Coreia do Norte. Esperava tornar-se membro do Partido dos Trabalhadores e um dia chegar a prefeita de sua cidade. Mas foi impedida de subir na vida porque tinha família na China. Hoje é estudante universitária na Coreia do Sul.

A aluna do primário:
Ela adora cor-de-rosa e uma boneca que ganhou depois de escapar da Coreia do Norte. Ela nunca antes teve uma boneca. Acaba de chegar à Coreia do Sul.

A esposa repatriada:
Ela fugiu para a China na época da fome generalizada e estava vivendo com um chinês, com quem teve dois filhos. Mas em 2014 foi repatriada à Coreia do Norte e passou dois anos e meio num campo de prisioneiros. Libertada, ela escapou outra vez, mas dessa vez não parou na China. Ela acaba de chegar à Coreia do Sul.

Com reportagem de Yoonjung Seo, do "Washington Post"

Tradução de CLARA ALLAIN


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