Folha de S. Paulo


Europa prioriza segurança interna e diminui treinamento contra guerra

Caminhões verdes do exército percorrem os paralelepípedos das ruas de Bruxelas. Soldados em postura atenta patrulham o Champs-Elysées em Paris. Tropas italianas protegem o Coliseu. E os críticos dizem que os anos de uso em tarefas de segurança interna estão reduzindo a capacidade de guerra dessas forças armadas.

Hoje, o uso de tropas para tarefas de segurança interna —combate ao terrorismo— é o maior que a Europa Ocidental já viu desde a Segunda Guerra Mundial. E isso acontece em um momento no qual as forças armadas europeias precisam enfrentar diversos desafios de uma vez: a ameaça ressurgida da Rússia, conflitos persistentes no Oriente Médio, a imigração vinda do outro lado do Mediterrâneo, e pequenas operações militares em países distantes.

Diante da ameaça do terrorismo, os líderes europeus se apressaram a colocar unidades de seus exércitos nas ruas, depois da onda de atentados iniciada em 2015. Embora os defensores da prática afirmem que esse emprego de tropas ajuda a reforçar a segurança, as missões de segurança em tempo de paz vêm distendendo os recursos das forças armadas.

Hatim Kaghat - 22.mar.2016/AFP
Caminhão militar leva soldados em Bruxelas, na Bélgica, após ameaça de ataque terrorista
Caminhão militar leva soldados em Bruxelas, na Bélgica, após ameaça de ataque terrorista

Até recentemente, 40% dos soldados belgas em prontidão para combate estavam sendo usados em tarefas de segurança interna. Alguns oficiais se preocupam com a possibilidade de que a falta de tempo de treinamento para a guerra esteja prejudicado a capacitação bélica dessas tropas. Na França, o antigo comandante das forças armadas declarou no mês passado que deixou seu posto, em julho, pelo menos em parte para protestar contra o "superaquecimento" de suas forças.

O presidente Donald Trump vem pressionando os aliados dos Estados Unidos na Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan) para que dediquem mais recursos à sua defesa e a missões internacionais, mas as missões de segurança interna dificultam as coisas. O mais recente sinal de problemas surgiu no mês passado, quando a aliança não foi capaz de manter compromissos prévios quanto à missão de treinamento da Otan no Afeganistão.

Na Bélgica, um país de 11 milhões de habitantes, os líderes militares dizem que suas tropas estão sentindo o desgaste.

"Eu tive operadores de metralhadoras, nas seções de infantaria, que não disparavam suas metralhadoras há 16 meses, porque estavam sendo usados como fuzileiros", disse o major-general Marc Thys, comandante das forças de terra belgas. "É como pedir a uma seleção de futebol que não jogou o ano inteiro que entre em campo para a Copa do Mundo. Não funciona".

Até outubro, 1.250 soldados belgas estavam sendo usados em todo o país para patrulhar os grandes bulevares, estações ferroviárias e outros lugares públicos lotados que são alvos tentadores para os terroristas. A intenção era reforçar a segurança pública e dar aos policiais mais liberdade para cuidar de trabalho investigativo, em lugar de mantê-los atrelados a funções de patrulha.

O uso interno das forças armadas surgiu em um momento no qual os países europeus enfrentavam dificuldade para se proteger contra ataques, em uma nova era para as estratégias do terrorismo. Alguns dos recentes ataques inspirados pelo Estado Islâmico usavam explosivos e requeriam grandes redes de apoio, cujas atividades podem ser dificultadas por trabalho agressivo de combate ao terrorismo, mas outros ataques eram muito mais simples, e envolviam pouco mais que alugar um caminhão e sair atropelando pessoas.

Os proponentes da abordagem militar dizem que ataques como esses podem ser impedidos pela ação rápida dos soldados. Apontam como exemplo um atentado realizado em junho na estação ferroviária central de Bruxelas, durante o qual soldados que estavam de patrulha nas plataformas mataram um suspeito a tiros assim que ele detonou um pequeno aparato explosivo, sem causar ferimentos a outras pessoas.

"Não estávamos preparados para as ameaças que estávamos enfrentando", disse Steven Vandeput, ministro de Segurança da Bélgica, sobre os atentados terroristas de 2015 em Paris. O ataque ao jornal satírico "Charlie Hébdo", em janeiro, e o ataque à casa noturna Bataclan, em novembro daquele ano, tinham conexões com Bruxelas, e as autoridades estavam em busca de soluções rápidas.

"Depois de novembro a ameaça era forte, e a polícia precisava cuidar do trabalho policial", disse Vandeput. "Se não pudermos contribuir para a nossa defesa, como poderemos contribuir para a defesa dos outros?"

A França também colocou soldados nas ruas depois dos ataques terroristas, e enfrenta desafios semelhantes. Há tropas italianas em uso para missões de segurança interna desde 2008. O Reino Unido começou a recorrer a esse tipo de missão este ano, mas em escala modesta. Nos Estados Unidos, a lei federal em geral proíbe o uso das forças armadas para fins policiais, mas a Guarda Nacional, controlada pelos Estados em tempo de paz, tem mais flexibilidade.

A Alemanha vem sendo alvo de repetidos ataques terroristas em pequena escala, e seu Legislativo recentemente debateu um projeto que permitiria o uso do exército na segurança interna. Seria uma medida significativa, porque a história do país na Segunda Guerra Mundial faz com que os legisladores encarem com cautela o uso das forças armadas em missões internas. O Legislativo decidiu não agir quanto à proposta.

Na Bélgica, os soldados não têm poder para realizar detenções ou investigar crimes. Os proponentes do uso interno das forças armadas afirmam que seus fuzis poderosos servem como dissuasão quando eles patrulham mercados movimentados ou as estações de trem no horário do rush.

"A questão jamais foi mantê-los fazendo esse serviço para sempre, e sim mantê-los pelo tempo necessário", disse Saad Amrani, assessor político sênior da polícia federal belga. "Alguns países estão acostumados à violência e terrorismo. Nós não".

Mas porque o número de soldados belgas em prontidão para combate é pequeno, isso significa que muitos deles terminam realizando missões de segurança interna por até seis meses a cada ano. Mesmo que estejam em missão interna, os soldados não vivem nas bases militares com suas famílias. Em lugar disso, patrulham por muitas horas e dizem não ter muita chance de repousar. Alguns se queixam de quartéis superlotados e das instalações sanitárias inadequadas, que resultam da contenção de despesas.

Os críticos desse uso das forças armadas também afirmam que seu valor para a segurança é limitado.

O verdadeiro motivo para que os soldados estejam nas ruas, alguns deles dizem, é dar aos cidadãos belgas a sensação de que seus líderes estão combatendo o terrorismo. O uso dos soldados nessas missões se provou popular, e causou forte alta nos índices de aprovação das forças armadas.

"Eles ficam lá parados na frente de alguma edificação, fazendo tudo exceto aquilo que foram treinados a fazer", disse Wally Struis, professor emérito de aspectos econômicos da defesa na Real Academia Militar belga, e estudioso dessas missões. "Elas são ótimas operações de relações públicas".

As autoridades belgas reduziram o contingente usado em operações de segurança para mil soldados, em outubro, dando um pouco mais de intervalo às tropas entre missões de segurança interna.

"A pior parte das missões de segurança interna é o fato de que às vezes você passa semanas sem ver sua família ou amigos", disse um soldado, que falou sob a condição de que seu nome não fosse mencionado, porque não tinha autorização para se pronunciar publicamente sobre o assunto.

Em um sinal de até que ponto as capacidades bélicas da Bélgica estavam atrofiadas mesmo antes que soldados começassem a ser usados em missões de segurança interna, o exército do país teve de pedir coletes à prova de balas emprestados do exército norte-americano, porque seu equipamento era velho demais. As autoridades belgas disseram ter devolvido os últimos desses coletes no trimestre passado, depois que equipamentos novos foram comprados.

Os líderes também disseram que estão começando a resolver um problema de escassez de munição. Thys, o comandante das forças terrestres belgas, disse que o exército precisava de US$ 32 milhões em munição ao ano, e que até recentemente estava comprando apenas US$ 18 milhões anuais em munição.

E o país planeja elevar seus gastos com a defesa, que no momento são inferiores à metade do nível recomendado pela Otan. Os líderes da Otan receberam positivamente esses esforços, mas dizem que os países que gastam abaixo do planejado precisam se esforçar ainda mais.

A Bélgica tem o segundo menor gasto com a defesa na Otan, acima apenas do minúsculo Luxemburgo, em proporção ao tamanho das economia desses países.

"Os aliados europeus deveriam gastar mais com a defesa não só para satisfazer os Estados Unidos, mas porque isso serve aos seus interesses", disse Jens Stoltenberg, secretário geral da Otan, ao anunciar a elevação dos gastos militares dos países da aliança, este ano.

Os líderes da Bélgica apontam para missões militares no Mali, Lituânia, Afeganistão e outros lugares como prova de que seu pais continua ativo no mundo.

Forças armadas maiores também sentem o peso do uso de seus soldados para segurança interna.

"O número de missões que cabem aos nossos exércitos, tanto na França quanto no resto do mundo, não era tão alto assim desde a guerra da Argélia", em 1962, escreveu o general Pierre de Villiers, da França, em um livro de memórias lançado no mês passado. Villiers era o comandante das forças armadas francesas até renunciar, em julho, depois de uma disputa com o presidente Emmanuel Macron sobre gastos militares.

"O exército francês agora enfrenta superaquecimento, por ter de realizar múltiplas missões com meios limitados", escreveu Villiers.

As consequências podem ser perigosas, aponta Vincent Desportes, um general francês reformado.

"O pessoal que está protegendo a Torre Eiffel é treinado para o que faz, individualmente. Mas se tivermos de enfrentar uma situação mundial grave, não estaremos prontos, porque não treinamos o suficiente", ele disse.


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