Folha de S. Paulo


Queda de Mugabe teve espiões, complô de assassinato e reuniões na China

Dentro da residência presidencial em Harare, Robert Mugabe estava na situação mais difícil de seus 37 anos no poder. Havia tanques nas ruas, e tropas tinham ocupado a emissora de televisão estatal, de onde o Exército anunciara que havia tomado controle do Zimbábue.

Com 93 anos de idade, mas ainda alerta, Mugabe resistia. O único líder que o Zimbábue conhecera desde sua independência se negava a deixar o poder.

Numa reunião tensa com o alto escalão militar, em 16 de novembro, o chefe de Estado mais velho do mundo ordenou ao comandante militar Constantino Chiwenga: "Traga-me a Constituição e me diga o que ela diz", segundo duas pessoas presentes. Um assessor trouxe uma cópia da Constituição, que declara que o presidente é o comandante-chefe das forças armadas.

Chiwenga hesitou antes de responder que o país estava diante de uma crise nacional que exigia uma intervenção militar. Mugabe, segundo os presentes, retorquiu que o problema era o Exército. Então o presidente pressionado indicou que talvez fosse possível encontrarem uma solução juntos.

A reunião marcou o início de cinco dias de impasse extraordinário entre Mugabe e a lei suprema do Zimbábue, de um lado, e, do outro, as forças armadas, seu partido político e a população zimbabuana.

Os generais queriam Mugabe fora do poder, mas buscavam um golpe "pacífico", que não manchasse irreparavelmente a reputação da administração que queria assumir o poder, segundo múltiplas fontes militares e políticas.

O presidente aceitou a derrota, finalmente, apenas depois de ter sido afastado por seu próprio partido, o Zanu-PF, e enfrentado a desonra do impeachment. Ele assinou uma carta de renúncia endereçada ao presidente do Parlamento, Jacob Mudenda, que foi lida em voz alta aos parlamentares em 21 de novembro.

Mugabe, que comandara o país desde 1980, assistindo a seu mergulho na ruína econômica sem nada fazer enquanto sua mulher comprava artigos de luxo, tinha caído.

O país explodiu em alegria. Parlamentares dançaram, e dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas para festejar uma queda política que transmitiu ondas de choque pela África e o mundo.

Uma semana apenas antes, muitos teriam visto a queda de Mugabe como algo impensável.

A Reuters investigou os fatos que levaram ao afastamento de Mugabe, mostrando que a ação do exército foi o momento culminante de meses de planejamento que envolveu Harare, Johannesburgo e Pequim.

RIVALIDADE ACIRRADA

Em setembro, baseada em um manancial de documentos de inteligência da temida CIO (Organização Central de Inteligência) do próprio Mugabe, a Reuters divulgou que o exército apoiava o nome deEmmerson Mnangagwa, o então vice-presidente, para suceder Mugabe quando chegasse a hora.

O informe detalhou como Mnangagwa, amigo vitalício de Mugabe e seu ex-chefe de segurança, poderia cooperar com os adversários políticos do presidente para reativar a economia. O documentou provocou furor nos círculos políticos e de mídia zimbabuanos.

Uma rivalidade aguda se intensificou entre Mnangagwa e Grace, 52, mulher de Mugabe, que também esperava assumir a presidência e tinha o apoio de uma facção do Zanu-PF conhecida como G40.

No início de outubro, Mnangagwa disse que foi levado de avião a um hospital na África do Sul depois de ser alvo de uma tentativa de envenenamento em agosto. Ele não apontou para nenhum suspeito –mas não precisava fazê-lo.

Grace reagiu rapidamente, negando envolvimento na tentativa de assassinato e acusando seu rival de tentar angariar apoio. De acordo com reportagem no jornal estatal "Herald", ela minimizou a importância de Mnangagwa e o descreveu como nada mais que um funcionário de seu marido.

Enquanto a pressão se intensificava, Mugabe ficava cada vez mais paranoico em relação à possível deslealdade do chefe do exército, Constantino Chiwenga, militar de carreira e veterano condecorado da guerra zimbabuana contra o governo de minoria branca, nos anos 1970.

Os espiões do presidente, que permeavam todas as instituições e todos os setores da sociedade no Zimbábue, o estavam avisando que os militares não aceitariam Grace como presidente.

"Mugabe está muito preocupado com a possibilidade de um golpe", disse um relatório de inteligência datado de 23 de outubro. "Figuras seniores da CIO lhe disseram abertamente que os militares não aceitarão a nomeação de Grace de boa vontade. Ele foi avisado que deve se preparar para uma guerra civil."

A Reuters teve acesso ao documento e a centenas de outros relatórios de inteligência datados de a partir de 2009, anteriores ao golpe. Os documentos vêm do interior da CIO, mas a Reuters não conseguiu determinar quem os redigiu. A CIO é dividida em facções pró e anti-Mugabe.

No final de outubro, Mugabe convocou Chiwenga para uma discussão cara a cara, revela outro dos documentos, datado de 30 de outubro. Mugabe, segundo o texto, perguntou ao comandante militar sobre seus vínculos com Mnangagwa e lhe disse que fazer oposição a Grace lhe custaria sua vida.

Segundo o relatório de inteligência, "Chiwenga foi avisado por Mugabe que é hora de ele começar a seguir [obedecer suas ordens]. Ele mencionou a Chiwenga que aqueles que combatiam sua mulher certamente teriam uma morte dolorosa."

Nesse mesmo encontro Mugabe ordenou a Chiwenga que jurasse lealdade a Grace. Chiwenga se negou a fazê-lo. "Chiwenga se negou a ser intimidado", diz o relatório. "Ele se conservou firme na lealdade a Mnangagwa."

A Reuters enviou perguntas ao porta-voz de Mugabe, George Charamba, sobre essa discussão e outros pontos deste artigo. Em mensagem enigmática datada de 23 de novembro, Charamba respondeu: "Curta texto da Reuters. Boa noite." Dois representantes de Chiwenga se negaram a comentar.

Após outro encontro tenso com Mugabe em 5 de novembro, Chiwenga deixou Harare numa viagem oficial previamente organizada com destino à China, que, como a maior investidora em Zimbábue, exerce influência importante no país.

Um dia depois, Mugabe afastou Mnangagwa da vice-presidência e o expurgou do Zanu-PF, o movimento de libertação no qual Mnangagwa serviu desde sua juventude e pelo qual quase foi executado quando era militante jovem e foi flagrado detonando uma bomba num trem.

Para os generais, Mugabe tinha ido longe demais. De acordo com uma fonte militar, os militares imediatamente ativaram o alerta "código vermelho", o nível de alerta mais alto.

COMPLÔ DE ASSASSINATO

Momentos após o afastamento de Mnangagwa, em 6 de novembro, o esquema de segurança dedicado a ele e sua residência foi desativado, segundo declaração que ele emitiu mais tarde. Ele foi informado que corria perigo de vida.

"Agentes de segurança amigos me avisaram que um plano estava sendo traçado para me prender, levar a uma delegacia de polícia e me eliminar", disse Mnangagwa em comunicado emitido em 21 de novembro. "Para minha própria segurança, era melhor eu deixar o país imediatamente."

De Harare, Mnangagwa conseguiu atravessar a fronteira do vizinho Moçambique, de onde teria embarcado num avião para a China, segundo uma fonte familiarizada com seus movimentos. Ali, reuniu-se com Chiwenga, segundo a fonte.

A Reuters não pôde confirmar a informação, mas um relatório de inteligência de 13 de novembro indica que Mugabe suspeitava que alguns de seus generais estivessem na China, preparando sua deposição.

"Vários generais já estão na China, prontos para planejar a deposição de Mugabe com Mnangagwa", dizia o relatório. O texto não deixou claro quais eram os generais, nem se sua viagem à China tinha sido autorizada.

Os espiões de Mugabe suspeitavam que aliados antigos tivessem se voltado contra o presidente envelhecido. Um relatório de inteligência de 30 de abril dizia que Pequim e Moscou eram favoráveis a uma mudança de regime, frustrados com a implosão econômica do Zimbábue sob Mugabe.

"China e Rússia querem mudanças", disse o relatório. "Querem mudanças no Zanu-FP. Estão fartas da liderança de Mugabe."

"Os dois países estão até dispostos a fornecer armas de guerra a Mnangagwa clandestinamente para ele combater Mugabe."

Nem o Ministério da Defesa nem o Ministério do Exterior chineses responderam a pedidos de declarações. O Ministério do Exterior tinha dito anteriormente que a visita de Chiwenga foi "um intercâmbio militar normal acordado previamente pela China e o Zimbábue".

A Reuters enviou por escrito pedidos de declarações ao Kremlin, ao Ministério da Defesa e ao Ministério do Exterior russos. Nenhum deles respondeu.

A China se interessa pelo Zimbábue há anos, tendo apoiado as forças de Mugabe durante a luta pela libertação. Após a independência zimbuana, criou laços com o país nas áreas de mineração, segurança e construção.

A Rússia também tem vínculos com o Zimbábue desde o início da década de 1980, e em 2014 um consórcio russo formou uma parceria para desenvolver um projeto de mineração de platina no país, no valor de US$ 3 bilhões.

A viagem de Chiwenga à China culminou com um encontro dele com o ministro da Defesa, Chang Wanquan, em 10 de novembro.

Duas fontes informadas sobre o que foi discutido no encontro disseram à Reuters que Chiwenga pediu à China que concordasse em não interferir se ele assumisse o controle do Zimbábue temporariamente para depor Mugabe. Chang lhe assegurou que Pequim não se envolveria, e, segundo as fontes, os dois também discutiram táticas que poderiam ser usadas durante o golpe "de facto".

A Reuters não pôde averiguar se Mnangagwa se reuniu com Chang.

Informado sobre as discussões na China, Mugabe convocou o comissário de polícia, Augustine Chihuri, ainda leal a ele, e seu vice, Innocent Matibiri, encarregando-os de prender Chiwenga quando retornasse a Harare.

Os dois reuniram um pelotão de cem policiais e agentes de inteligência. Mas o complô foi vazado, e partidários de Chiwenga conseguiram reunir uma equipe de várias centenas de agentes e soldados das forças especiais para receber seu comandante quando o avião dele se aproximava da cidade.

Segundo uma fonte de segurança, alguns deles estavam disfarçados de carregadores, com seus uniformes militares e armas escondidos sob macacões e coletes de alta visibilidade.

Percebendo que perdiam em número e armas para o grupo contrário, a equipe de policiais leais a Mugabe recuou, permitindo que Chiwenga desembarcasse sem incidente, segundo a fonte de segurança.

O porta-voz de Mugabe não comentou o incidente.

"MUITO ALARMADOS"

Dois dias depois, Chiwenga e um grupo de comandantes militares pediram uma reunião com Mugabe em sua residência oficial em Harare, uma mansão colonial com leopardos empalhados e espessos tapetes vermelhos.

Eles se disseram "muito alarmados" com o afastamento de Mnangagwa e pediram a Mugabe que controlasse sua esposa e a facção G40, leal a ela, que acusavam de tentar dividir as forças armadas. A informação é de um funcionário governamental que estava presente na reunião.

"O que vocês acham que deve ser feito?" perguntou Mugabe aos militares, reclinado numa poltrona.

Os generais lhe pediram garantias de que também eles não seriam expurgados. A resposta de Mugabe foi ambígua, segundo a fonte governamental. Chiwenga disse ao presidente que levaria a público suas preocupações com a facção G40.

Horas depois, Chiwenga chamou repórteres ao quartel principal do exército em Harare para divulgar um comunicado.

"Precisamos recordar aos responsáveis pelas manobras e traições que as forças armadas não vão hesitar em intervir para proteger nossa revolução", ele disse, lendo um texto preparado.

Na tarde seguinte, a Reuters informou que seis veículos blindados de transporte de tropas se dirigiram ao quartel-general da Guarda Presidencial de Mugabe, na periferia de Harare. Não estava claro quem os comandava.

A população da capital estava ansiosa, mas ainda não sabia o que significava toda a movimentação.

O TELEFONE FICOU MUDO

Às 18h do dia 14 de novembro, o comboio de Mugabe se dirigiu à sua residência particular, conhecida como "Blue Roof", no subúrbio de Borrowdale.

Enquanto isso, as redes sociais fervilhavam com imagens de veículos blindados percorrendo as estradas em direção a Harare e especulações sobre um possível golpe.

Cada vez mais preocupada, pouco após as 19h Grace telefonou a um ministro do gabinete pedindo que o WhatsApp e o Twitter fossem fechados. A informação é de uma fonte que teve acesso a uma gravação da conversa.

O ministro, cuja identidade a Reuters não está informando por razões de segurança, respondeu que tal iniciativa seria da alçada do ministro de Segurança do Estado, Kembo Mohadi.

"Ninguém vai tolerar um golpe. Isso não pode acontecer", disse Grace, conhecida comumente como Amai ("Mãe"), segundo uma fonte que ouviu a gravação.

A voz de Mugabe é ouvida na linha: "Como vocês ouviram de Amai, há algo que se possa fazer?"

O ministro deu a mesma resposta, sobre as responsabilidades da Segurança de Estado, e então o telefone ficou mudo.

Mohadi se negou a comentar o assunto.

Duas horas mais tarde, dois veículos blindados entraram na sede em Pockets Hill da emissora Zimbabwe Broadcasting Corporation (ZBC),

Dezenas de soldados fecharam a sede e invadiram o estúdio, onde enfrentaram profissionais, confiscaram seus telefones e interromperam a transmissão de programas. A ZBC, pertencente ao governo e vista amplamente como porta-voz de Mugabe, trocou sua programação normal por vídeos de música pop.

O círculo mais próximo de Mugabe, composto quase inteiramente por membros do G40, não fazia ideia do que estava acontecendo, segundo quatro fontes que acompanharam suas conversas.

O ministro da Informação, Simon Khaya Moyo, ligou para o ministro da Defesa, Sydney Sekeramayi, para perguntar se ele tinha informações sobre um possível golpe. Sekeramayi disse que não, mas tentou averiguar com o comandante militar Chiwenga.

Este disse que retornaria a ligação de Sekeramayi. Segundo as fontes, ele não o fez.

Moyo se encontra escondido, e não foi possível obter declarações dele. Sekeramayi se negou a dar declarações.

ESQUEMA DE SEGURANÇA

Enquanto os ministros da facção G40 tentavam desesperadamente descobrir o que estava acontecendo, os homens de Chiwenga cercaram a residência de Mugabe.

Segundo uma fonte informada sobre a situação, Albert Ngulube, diretor da CIO e chefe do esquema de segurança de Mugabe, estava voltando para sua casa de carro às 21h30 depois de visitar Mugabe. Ele topou com um carro blindado na Borrowdale Brooke, uma rua lateral que conduz à casa de Mugabe.

Quando Ngulube ameaçou atirar nos soldados, eles o espancaram e detiveram. Ngulube foi solto mais tarde, mas, segundo a fonte, sofreu ferimentos faciais e cranianos.

Representantes de Chiwenga e Mnangagwa se negaram a dar declarações. A Reuters não pôde contatar Ngulube.

Outros ministros do G40 também foram apreendidos por militares. O ministro das Finanças, Ignatius Chombo, foi encontrado escondido num banheiro de sua casa e espancado, sendo então detido em local não revelado por mais de uma semana.

Libertado em 24 de novembro, ele foi internado num hospital com ferimentos nas mãos, nos braços e nas costas, segundo disse à Reuters seu advogado, que descreveu a ação do exército como "brutal e draconiana".

Soldados detonaram com explosivos a porta da casa de Jonathan Moyo, o cérebro do G40, segundo imagens em vídeo vistas pela Reuters. Outros invadiram a residência do ministro do Governo Local Saviour Kasukuwere, outro partidário crucial de Grace.

Os dois ministros conseguiram fugir para a residência de Mugabe. Contatado pela Reuters pouco após a meia-noite de 15 de novembro, Kasukuwere estava audivelmente estressado. "Não posso falar, estou numa reunião", ele disse antes de desligar.

Mugabe se aferrou à presidência por mais uma semana, enquanto Chiwenga e suas forças tentavam organizar uma saíde pacífica e quase legal para o líder.

Mas Mugabe desistiu, finalmente, quando o Parlamento deu início a um processo de impeachment, em 21 de novembro. Após 37 anos no controle, período no qual boa parte do país mergulhou na pobreza, sua carta de renúncia disse que ele se afastava "por preocupação com o bem-estar do povo de Zimbábue".

Tradução de CLARA ALLAIN


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