Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Condenação de sérvio-bósnio por massacre não traz justiça

A condenação do ex-general sérvio-bósnio Ratko Mladic à prisão perpétua na quarta-feira (22) foi a última grande cartada do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia, criado em 1993 especificamente em resposta aos crim­es cometidos nas guerras de desintegração da região e que encerrará suas atividades ao final deste ano.

O veredicto confirmou a narrativa já consolidada por outras práticas da Justiça internacional sobre a Guerra da Bósnia (1992-1995).

Peter DeJong/AFP
Ratko Mladic faz sinal de positivo ao chegar no tribunal
O sérvio-bósnio Ratko Mladic faz sinal de positivo ao chegar no tribunal, em Haia

Por um lado, a execução de cerca de 8.000 homens e meninos muçulmanos em Srebrenica, em 1995, foi considerada genocídio. Por outro lado, episódios como o cerco de Sarajevo e as campanhas de limpeza étnica pelas forças sérvias no norte e nordeste da Bósnia, "apenas" crimes contra a humanidade.

Ao destacar Srebrenica como um caso isolado, essa interpretação do tribunal dificulta um entendimento mais amplo sobre a própria dinâmica do conflito.

A limpeza étnica não foi um efeito colateral da guerra, e sim seu objetivo final. Srebrenica não foi um acidente ou um excesso, como já foi sugerido por nacionalistas sérvios. O episódio representou a realização, em maiores proporções, de uma dinâmica responsável pela perseguição, prisão, deportação, tortura, estupro e assassinato de não sérvios nas regiões conquistadas pelas forças de Mladic, como o tribunal reconheceu.

A ausência da palavra genocídio para designar os acontecimentos em outras municipalidades do país —a única acusação da qual Mladic foi inocentado— decepcionou vítimas dessas localidades, que não consideram seu sofrimento reconhecido pela comunidade internacional e mesmo pelo Estado bósnio.

Além disso, questionam o próprio conceito de justiça e como ele é entendido num período de pós-guerra. Ainda que se reconheça a importância do processo jurídico, do tribunal e das condenações, a pergunta que ainda persiste é "justiça foi feita"?

A resposta tende a ser negativa, pois a grande maioria da população considera sua vida menos satisfatória hoje do que antes da guerra.

As consequências da política de limpeza étnica ainda persistem, com a consolidação de cidades e regiões historicamente multiculturais habitadas hoje majoritariamente por um dos três grupos que constituem a Bósnia (muçulmanos, sérvios e croatas).

A economia nunca se recuperou apesar da ampla ajuda da comunidade internacional, e a transição econômica acentuou desigualdades e traduziu-se em um grande número de pessoas desempregadas. Muitos crimes seguem sem resolução. Metade da população bósnia de 4 milhões foi deslocada internamente ou refugiou-se no exterior durante o conflito.

Não há números confiáveis para determinar quantas voltaram de fato às suas casas, mas o censo mais recente, de 2013, revelou que o país perdeu 1/5 da população do pré-guerra. A reparação parece inatingível.

O legado da guerra, portanto, persiste e, com ele, o sentimento de injustiça, como ilustrou o ativista bósnio Refik Hodzic nas redes sociais no dia do veredicto: "O foco do dia não deve ser Ratko Mladic, ele teve seu momento no tribunal, agora deixem-no morrer na cadeia. É o seu legado que devemos procurar desmantelar. Legado que pode ser visto na minha cidade natal de Prijedor (norte da Bósnia), uma comunidade ainda devastada pelos crimes de Mladic, 25 anos atrás".

Parte desse legado se reproduz pela presença, no campo político, de aliados ou ex-aliados das principais figuras da guerra. Figuras que reforçam narrativas vitimistas ou o negacionismo e que continuam a dominar o debate político na região.

O presidente da República Srpska (uma das duas entidades que constituem a Bósnia), Milorad Dodik, exaltou Mladic, classificou-o como herói e afirmou que a sentença do tribunal era um "tapa na cara" das vítimas sérvias.

O tribunal é largamente considerado anti-sérvio por essa população, revelando que a Justiça internacional não ajudou a consolidar processos de reconciliação. Quando o tribunal encerrar suas atividades, em dezembro, muito ainda restará a ser feito em termos de justiça na região.

RENATA SUMMA é professora de relações internacionais da PUC-Rio e da FGV. Sua tese de doutorado, defendida na PUC-Rio, analisa o período do pós-guerra na Bósnia

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QUEM É QUEM
Acusados por massacres na Guerra da Bósnia

Ratko Mladic, 75
> Chefiou o Exército sérvio-bósnio de 1992 a 1996, quando foram cometidos crimes no cerco a Sarajevo e em Srebrenica
> Foi condenado à prisão perpétua

OUTROS ACUSADOS

Slobodan Milosevic
Líder da Iugoslávia durante os conflitos, foi enviado a Haia em 2001; morreu em 2006, na prisão, antes de ser julgado por crimes de guerra

Radovan Karadzic
Foi o líder político da república sérvio-bósnia; preso em 2008, foi condenado a 40 anos de prisão por crimes em Sarajevo e Srebrenica

Goran Hadzic
Liderou rebeldes sérvios na Croácia; morreu em 2016 antes do fim do seu julgamento, no qual era acusado de assassinato e tortura

O QUE FOI A GUERRA

Fim da Iugoslávia
Em meio à desintegração do país comunista, a Bósnia, de maioria muçulmana, declara independência em 1992

Início da guerra
Os sérvio-bósnios (cristãos ortodoxos, um terço da população da Bósnia) rejeitam a declaração

1 ano de conflito
Em 1993, a ONU declara zonas de segurança que incluem as cidades de Sarajevo e Srebrenica

Massacre
Tropas lideradas por Mladic invadem Srebrenica em 1995 e matam 8.000 muçulmanos

Término da guerra
Após bombardeios da Otan (aliança militar ocidental), as forças sérvio-bósnias são derrotadas em nov.1995


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