Folha de S. Paulo


Antes de muro físico, Trump impõe barreira burocrática contra imigrantes

A visão do presidente Donald Trump de um "grande, lindo" muro na fronteira com o México talvez nunca se realize, e quase certamente não como uma estrutura física de 3.200 km estendendo-se de um oceano ao outro.

De uma maneira sistemática e menos visível, entretanto, seu governo está seguindo um plano para reduzir o número de estrangeiros que vivem nos EUA —os que não têm documentos e os que estão no país ilegalmente— e reformular o sistema de imigração dos EUA para as próximas gerações.

Frederic J. Brown - 1.nov.2017/AFP
Agentes da patrulha de fronteira passam em frente a protótipos de muro na divisa com o México
Agentes da patrulha de fronteira passam em frente a protótipos de muro na divisa com o México

Em todos os órgãos e programas, as autoridades federais estão usando seu poder executivo para montar um muro burocrático que poderá ser mais eficaz que qualquer um de concreto ou metal. Enquanto alguns atos atraíram ampla atenção, outros foram implementados mais discretamente.

O governo se moveu para cortar o número de refugiados, acelerar as deportações e encerrar a residência provisória de mais de um milhão de pessoas, entre outras medidas.

Na segunda-feira (20), o Departamento de Segurança Interna disse que quase 60 mil haitianos autorizados a ficar nos EUA depois do terremoto devastador em seu país em 2010 têm até julho de 2019 para sair ou obter outra forma de situação legal.

"Ele está construindo um muro virtual com seus atos e sua retórica", disse Kevin Appleby, diretor de políticas migratórias no Centro de Estudos da Migração, um grupo de pensadores sem fins lucrativos.

Membros do governo Trump dizem que estão simplesmente aplicando leis que seus antecessores não aplicaram e preservando os empregos dos americanos. Governos republicanos e democráticos anteriores foram brandos demais na aplicação da lei, dizem eles, e tiveram uma visão muito cor-de-rosa da imigração como uma força claramente positiva.

"Durante décadas, a população americana vem pedindo e suplicando a nossas autoridades eleitas por um sistema de imigração que seja legal e sirva ao interesse nacional", disse o secretário da Justiça, Jeff Sessions, em Austin (Texas) no mês passado. "Agora temos um presidente que apoia isso."

Bob Dane, diretor-executivo da Federação para Reforma da Imigração Americana, que pressionou a favor de várias metas do governo Trump sobre imigração, disse que o presidente "realmente deu marcha a ré nessa visão expansiva da imigração que ocorreu no governo Obama".

As novas restrições poderão reduzir significativamente o número de trabalhadores nascidos no estrangeiro na força de trabalho dos EUA, mas especialistas em demografia dizem que há pequena probabilidade de que elas alterem a transformação racial e étnica do país, que, segundo os críticos de Trump, é seu objetivo.

As projeções do Censo mostram que em meados deste século os EUA não terão mais uma única maioria racial ou étnica, segundo o Centro de Pesquisas Pew.

No entanto, ao erguer obstáculos mais rígidos e elevados para os estrangeiros que buscam se mudar para os EUA ou continuar no país depois de chegar ilegalmente, a Casa Branca está tentando fazer o país retornar aos controles mais rígidos da imigração em vigor antes dos anos 1960.

"Dentro do governo há vários atores chaves que estão apenas procurando qualquer oportunidade, qualquer programa, cada margem regulatória ou administrativa que exista para restringir a entrada nos EUA", disse Linda Hartke, presidente e executiva-chefe do Serviço Luterano de Imigração e Refugiados, que reassenta refugiados.

REFORMA BUROCRÁTICA

Mesmo enquanto combate ordens judiciais que tentam conter partes da agenda migratória de Trump, Sessions, o assessor da Casa Branca Stephen Miller e outros atores chaves estão encontrando maneiras de encolher o sistema de imigração.

Miller foi assessor de Sessions antes que os dois entrassem para o governo; em menos de um ano, suas prescrições de políticas de imigração passaram do reino das listas de desejos a ordens executivas da Casa Branca.

Em outubro, a Casa Branca —em um plano liderado por Miller— disse que havia conduzido uma "revisão de baixo para cima de todas as políticas de imigração" e descobriu "brechas perigosas, leis antiquadas e vulnerabilidades facilmente exploradas em nosso sistema de imigração —políticas atuais que estão prejudicando nosso país e nossas comunidades".

Trump endossou a legislação do Partido Republicano para cortar a imigração legal anual pela metade, reduzindo o número de "green cards" emitidos anualmente de cerca de 1 milhão para 500 mil. Mais peso seria dado aos imigrantes com qualificação profissional, em oposição aos que têm parentes nos EUA.

O presidente cortou o número de refugiados que os EUA se dispõem a aceitar anualmente de 110 mil para 45 mil, o nível mais baixo desde 1980, e ordenou a implementação de um sistema demorado de "seleção extrema" que poderá diminuir em muito o número de refugiados aprovados a cada ano. Em outubro, 1.242 refugiados chegaram aos EUA, contra 9.945 em outubro de 2016.

Trump também eliminou um programa menor especificamente para refugiados que fugiam da violência na América Central. O Pentágono, citando preocupações sobre a seleção, suspendeu um programa de recrutamento que oferecia a estrangeiros capacitados uma via rápida para a cidadania se servissem nas Forças Armadas.

Muzaffar Chishti, diretor do Instituto de Política Migratória na faculdade de direito da Universidade de Nova York, disse que quase 350 mil recém-chegados legalmente aos EUA por ano são cônjuges e filhos menores de cidadãos americanos e residentes permanentes.

Já que barrar essas chegadas não entra em consideração, segundo Chishti, o governo teria de eliminar ou reduzir acentuadamente quase todos os outros meios de entrada para reduzir o número anual de imigrantes para 500 mil.

Além da decisão desta semana sobre os haitianos, o governo se recusou neste mês a renovar a Situação de Protegido Temporário, uma espécie de residência provisória, para cerca de 2.500 nicaraguenses.

O Departamento de Estado diz que as condições na América Central e no Haiti que foram usadas para justificar a proteção durante até duas décadas não exigem mais uma prorrogação. Decisões estão pendentes sobre mais de 250 mil hondurenhos e salvadorenhos com permissão de residência provisória.

Trump também está encerrando o Programa de Ação Retardada para Chegadas de Crianças (Daca, na sigla em inglês), do governo Obama, que concedeu permissão de trabalho para 690 mil jovens imigrantes trazidos para os EUA quando crianças.

O governo está expandindo os tribunais de imigração e centros de detenção e intensificou as deportações do interior dos EUA, onde milhões de imigrantes sem documentos com filhos nascidos nos EUA e sem histórico criminal grave tinham pouco medo de serem expulsos sob o presidente Barack Obama.

As detenções pela Agência de Imigração e Alfândega (ICE, na sigla em inglês) aumentaram mais de 40% neste ano, e o órgão quer mais que duplicar seus membros até 2023, segundo uma nota de contratação federal publicada neste mês.

A ICE está pedindo um grande aumento das verificações em locais de trabalho e assinou mais de 20 acordos com governos locais e estaduais que querem ajudar a prender e deter moradores sem documentos.

"Se você está neste país ilegalmente e cometeu um crime ao entrar no país, você deve se sentir desconfortável", disse a legisladores neste ano Thomas Homan, a principal autoridade do ICE. "Vocês devem olhar por cima do ombro. E devem se preocupar."

O presidente e seus assessores fizeram pressão apesar da reação veemente de defensores e legisladores democratas, que em Estados como Califórnia e Illinois instruíram a polícia e autoridades públicas a evitar a cooperação com a ICE. O governo Trump ameaçou privar essas jurisdições "santuários" de verbas federais, em um impasse jurídico cada vez maior.

MÃO DE OBRA

O discurso duro de Trump por si só parece ser um dos melhores baluartes do governo: as travessias ilegais na fronteira com o México despencaram para seu nível mais baixo em 45 anos, e agentes dos EUA estão apanhando uma porcentagem muito maior de pessoas que tentam entrar ilegalmente.

As solicitações para vistos qualificados H-1B e matrículas para novos estudantes estrangeiros também diminuíram.

William Frey, um demógrafo no Instituto Brookings, disse que até agora os índices de imigração nos EUA pouparam amplamente o país dos desafios que enfrentam países industriais avançados como o Japão e a Alemanha, que não conseguem substituir os trabalhadores envelhecidos com rapidez suficiente.

Ao cortar a imigração, disse Frey, o país poderá acabar com escassez de mão de obra e outros problemas de disponibilidade de força de trabalho.

Mas embora alguns dos mais fervorosos apoiadores de Trump vejam a contenção da imigração como uma maneira de reverter a rápida transformação racial e étnica dos EUA, Frey disse que é uma meta irrealista.

Em 2020, as projeções do Censo mostram que as minorias vão representar mais da metade da população menor de 18 anos, por causa das taxas de nascimento mais altas em populações não brancas.

E até 2026 o número estimado de brancos deverá começar a diminuir em números absolutos, disse ele, conforme as mortes superarem os nascimentos.

"Você pode desacelerar o ritmo da imigração de latino-americanos, mas isso não tornará a população mais branca", disse Frey. "Apenas a tornará menos branca em um ritmo mais lento."

Trump continua insistindo que seu governo construirá um muro na fronteira, apesar do custo exorbitante projetado e de autoridades do Departamento de Segurança Doméstica dizerem que uma estrutura de 3.200 km é impraticável.

Seus apoiadores dizem admirar o presidente por seguir adiante em seus esforços de reorganização e veem uma mudança histórica e geracional a caminho.

"Há mais de uma maneira de se alcançar o objetivo", disse Dane. "As soluções legislativas são ótimas, mas o governo claramente fez coisas nos bastidores... Os resultados foram dramáticos."

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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