Folha de S. Paulo


minha história

Ex-escrava sexual do Estado Islâmico não tem esperança de voltar a morar no Iraque

Bruno Santos/Folhapress
A refugiada yazidi Fareeda Khalaf, durante sua passagem por São Paulo, no começo de novembro

RESUMO Fareeda Khalaf, 21, tinha 19 anos quando Kotcho, a vila iraquiana onde morava, foi atacada pelo Estado Islâmico. Membro da minoria religiosa yazidi, foi torturada e vendida como escrava sexual. Passou mais de um ano no cativeiro, antes de fugir. Após reencontrar a família em um campo de refugiados, mudou-se para a Alemanha. Ela esteve no começo de novembro em São Paulo, onde deu palestra a convite de um banco.

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Na religião yazidi, você sempre reza pedindo algo de bom para outra pessoa, não há a ideia de atacar alguém. Por isso, nunca tinha imaginado o que iria acontecer.

Em agosto de 2014, o Estado Islâmico atacou a minha vila. Nós não sabíamos que eles viriam, tínhamos uma vida de paz. Eu me preparava para ser professora de matemática, mas tudo acabou.

Eles chegaram destruindo tudo, botando fogo. Levaram todo mundo para uma escola e disseram que tínhamos de nos converter ao islã, ou então morreríamos. Ninguém aceitou, então eles levaram os homens para fora e começaram a atirar. Acho que mataram meu pai e meu irmão naquele dia.

As mulheres foram separadas em grupos, entre mais novas e mais velhas. As idosas e as grávidas eles mataram na hora. Acabei sendo levada para Raqqa, na Síria, com mais umas 30 meninas.

Lá havia uma espécie de mercado de escravas. Um homem selecionou a mim e a outra garota. Eu me recusei a ir, mas me bateram e me levaram do mesmo jeito.

Então ele me disse que iria colocar uma bomba em mim e que eu deveria explodir uma base do Exército sírio. Eu disse que ficaria feliz em ser uma mulher-bomba, mas para explodir militantes do Estado Islâmico. Ele ficou bem irritado, e então eles me estupraram.

Foi aí que decidi me matar. Consegui um pedaço de vidro e cortei meu pulso. Não sei direito o que houve, tinha muito sangue, mas quando acordei, estava em uma casa. Eles me salvaram porque queriam me usar mais, não porque se importassem comigo.

Então fui levada para outra cidade, onde garotas yazidis escravizadas andavam pela rua. De lá, tentei escapar duas vezes, mas não consegui. O líder do Estado Islâmico nesse lugar me disse que eu estava influenciando outras meninas a fugir, então vieram muitos homens para me bater. Eu sempre mantive a cabeça erguida, nunca aceitava as ordens, e isso só os deixava mais irritados.

Fui então para uma base militar, e lá muitos homens me bateram e me estupraram. Quebraram ossos da minha cabeça, deixei de enxergar de um olho, fiquei dois meses sem poder andar.

Fui depois levada para a cidade de Deir Ezzor, ainda na Síria, outro pesadelo. Fiquei em um lugar com outras meninas, os homens passavam, escolhiam uma menina e tinham direito a fazer o que quisessem com ela. Mas foi lá que consegui fugir. Vi uma porta aberta e escapei.

Logo consegui ajuda e liguei para um tio. Ele achava que eu estava morta. Disse-me que um irmão meu estava em um campo de refugiados no norte do Iraque, então fui para lá.

Encontrar meu irmão foi um dos dias mais difíceis da minha vida. Por um lado, estava muito feliz em vê-lo; por outro, isso me lembrava que minha vida não ia voltar e que a maior parte da minha família estava desaparecida.

Ficamos por seis meses no campo. Nesse tempo, chegaram minha mãe e mais dois irmãos. A vida em um campo desses é horrível. Não há felicidade, esperança. Muitas mulheres como eu, que foram estupradas, se suicidam.

Ninguém quer ser refugiado, viver em uma tenda. As pessoas estão lá pois precisam. Os países precisam entender isso, nos dar oportunidade. Foi o que a Alemanha fez, permitindo a entrada de mais de mil mulheres yazidis.

Hoje, meus irmãos estão estudando, aprendendo um novo idioma. Isso traz um pouco de felicidade.

Aos poucos, fui percebendo que meu sonho não é mais ser professora de matemática, mas sim ajudar as outras mulheres yazidis.

Tinha uma ideia de que, quando as cidades iraquianas fossem liberadas do Estado Islâmico, as yazidis voltariam para casa. Mas eles [os combatentes da facção] foram derrotados, e ainda há 3.000 delas capturadas. Não vejo preocupação internacional com isso.

A verdade é que nós nunca vamos poder voltar ao Iraque. Do meu povoado, por exemplo, mais de 80% de quem sobreviveu ainda vive em campos de refugiados.

Minha vila já foi libertada, as pessoas poderiam voltar, mas não querem, porque muitos de nossos vizinhos, pessoas em quem confiávamos, lutaram ao lado do EI, destruíram nossas casas.

E os yazidis já sofreram ações semelhantes dezenas de vezes. Não sei em quanto tempo, um ano, dez, mas isso vai acontecer de novo, vai ter um grupo com outro nome nos atacando. Não é o termo Estado Islâmico a questão, é a ideologia que eles representam. Não são todos os muçulmanos, é claro, mas há um grupo que pensa assim.

Por isso, precisamos expor os crimes, levar os militantes do Estado Islâmico para um tribunal internacional para servirem de exemplo.

Alguns países estão começando a se posicionar, o Reino Unido já fez isso. Espero que o Brasil também faça, estou pronta para falar com o governo brasileiro e com o Congresso, contar a minha história. É importante, precisamos de um apoio moral dos países que reconheçam os crimes como genocídio.


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