Folha de S. Paulo


Trump me dá déjà vu tremendo de Chávez, diz jornalista venezuelana

Cerceada na Venezuela por seu trabalho investigativo e ameaçada pelo regime de Nicolás Maduro, Tamoa Calzadilla deixou o país em setembro de 2015 rumo aos EUA e, ao chegar na maior democracia do mundo, reviu o filme a que assistia desde 1999.

À época, Donald Trump estava no início da campanha, mas já dava amostras da rispidez com que lidaria com a mídia. "A forma como ele trata a imprensa me dá um déjà vu tremendo", disse à Folha.

Divulgação
A jornalista Tamoa Calzadilla deixou a Venezuela em 2015; agora, é repórter investigativa da Univisión
A jornalista Tamoa Calzadilla deixou a Venezuela em 2015; agora, é repórter investigativa da Univisión

Ganhadora do Prêmio Gabriel García Márquez, um dos mais importantes da América Latina, em 2014, e repórter investigativa do canal americano em espanhol Univisión, ela diz que as imprensas venezuelana e americana erraram na forma como trataram os fenômenos Trump e Hugo Chávez (1954-2013).

Leia abaixo a entrevista que Calzadilla deu à Folha antes de embarcar para o Rio para participar do Festival 3i —Jornalismo Inovador, Inspirador e Independente.

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Como foi a censura que você sofreu na Venezuela?

Tamoa Calzadilla - Passei 15 anos no Cadena Capriles, grupo que tinha o "Últimas Noticias", jornal de maior circulação do país. Foi lá que fiz minha vida como jornalista.

O que aconteceu é que o chavismo procurou muitas formas de censurar a mídia, e a mais efetiva foi a compra de veículos por empresários aliados que, ao chegarem, mudavam a linha editorial.

Então a pressão sobre mim foi tão forte que fui obrigada a pedir demissão pela censura à minha equipe de investigação. Mas as coisas ficaram cada vez piores, do ponto de vista econômico e político, a escassez estava muito forte, e tenho dois filhos pequenos.

Meu marido, que é fotojornalista, também foi preso pelos militares, e roubaram todo o seu equipamento depois que fez uma foto de Lilian Tintori [mulher do dirigente opositor Leopoldo López]. Depois de todas essas coisas, decidimos sair da Venezuela para proteger nossos filhos e a nós.

Como você vê a situação do jornalismo e de seus colegas?

Creio que o governo vai tentar enforcar de muitas maneiras o jornalismo, e só vão resistir os que têm a valentia e os princípios para resistir. Há muitos portais pequenos que estão resistindo e fazem jornalismo de verdade.

Você criticou a relação de Donald Trump com a imprensa ainda na campanha e antes que um colega seu, Jorge Ramos , fosse expulso de uma entrevista. Como avalia esses primeiros meses de governo?

Uma vez, escrevi que não era o fim do pesadelo ter me livrado de Chávez, ter fugido do populismo. Agora o populismo caminha pelos EUA.

Vejo em Trump muitas características que tinha Chávez, essa megalomania, governar pelo Twitter, atacar e insultar políticos, provocar crises diplomáticas como se estivesse em campanha permanente e, sobretudo, a forma como ele trata a imprensa me dá um déjà vu tremendo.

Muito me preocupam essas atitudes, embora nos EUA existam instituições sólidas que não permitiriam acontecer algo como na Venezuela.

Quais são os desafios para o jornalismo em uma época de governos tão hostis?

Além de reportar os gritos e as polarizações, é hora de seguir a investigação, de se aprofundar e contar às pessoas as coisas que as pessoas não saibam. E também trabalhar em colaboração, como fizemos nos Paradise Papers.

Como os jornalistas devem fazer para tentar reconquistar seus leitores e espectadores?

Ainda tenho muitas dúvidas, mas sinto que nós na Venezuela fracassamos como jornalistas, porque, por mais que trouxéssemos informação, as pessoas não nos deram ouvidos. O mesmo aconteceu aqui nos EUA.

Acho que, em vez de buscar um equilíbrio ou uma balança pulcra, temos de ser honestos, dizer quando acertamos e erramos, para que as pessoas possam confiar em nós, que é o nosso principal valor.

Estamos em um momento em que os leitores se guiam mais por opinião que pelos fatos. Há um desprestígio?

Acredito que esses líderes populistas atacam a imprensa e isso chega ao público que os segue de forma tão cega que se tornam contrários à mídia —e isso se reflete nas agressões. Na Venezuela, elas chegam a ser físicas, e isso começa a se repetir nos EUA.

Estamos em um momento muito difícil, mas temos que continuar nosso trabalho.


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