Folha de S. Paulo


Arábia Saudita acusa Irã de ter cometido 'ato de guerra' contra o país

Em meio a um expurgo palaciano de grandes proporções, o príncipe herdeiro e ministro da Defesa da Arábia Saudita, Muhammad bin Salman, acusou o Irã de atuar no lançamento de um míssil por rebeldes iemenitas contra a capital do país, Riad.

A grande questão é saber se ele quer reforçar sua posição política interna ao falar grosso ou se iria às vias de fato com o maior rival por influência no mundo islâmico.

Hamad I Mohammed - 24.out.2017/Reuters/3.(articleGraphicSpace).
O príncipe herdeiro saudita Muhammad bin Salman, 32
O príncipe herdeiro saudita Muhammad bin Salman, 32, que criticou o Irã

"O envolvimento do regime iraniano ao fornecer mísseis a suas milícias houthi é considerado agressão militar direta. Um ato de guerra", disse MBS, como o príncipe é conhecido por suas iniciais, em telefonema ao chanceler britânico, Boris Johnson.

O disparo ocorreu no sábado (4) e foi interceptado. Seria um episódio pontual no conflito que desde 2015 opõe os sauditas aos rebeldes da minoria xiita houthi, apoiados por Teerã, não fosse esta coletânea de eventos recentes.

1 - Donald Trump reverteu a política de Barack Obama contrária a Riad, prometendo rasgar o acordo nuclear que reforçou a influência do Irã ao livrar o país de sanções.

Os EUA amealharam US$ 110 bilhões em contratos militares e ganharam a possibilidade de ver a maior petroleira do mundo, a estatal saudita Aramco, abrir seu capital na Bolsa de Nova York.

2 - Riad aproximou-se de Moscou, aliada do Irã e fiadora do regime de Bashar al-Assad na Síria, odiado pelos sauditas. Russos e sauditas são os líderes na produção mundial de petróleo.

3 - MBS, 32, tomou o protagonismo do pai, o rei Salman, 81, no trono desde 2015. Neste ano, foi anunciado como herdeiro do trono. Assumiu uma agenda reformista, com acenos internos (mulheres poderão dirigir ) e externos (criação de uma "cidade-modelo capitalista" high-tech de US$ 500 bilhões chamada Neom e a abertura da Aramco).

4 - Mais importante, no sábado, MBS iniciou um expurgo na família real saudita, que conta com 15 mil príncipes e princesas (talvez 2.000 com poder de fato) para uma população de 33 milhões.

Mandou prender 11 deles, inclusive o chefe da Guarda Nacional, instituição que tem status igual ao do Exército. Cerca de 500 pessoas foram detidas, segundo relatos.

5 - Ao mesmo tempo, o premiê libanês, Saad Hariri, surgiu em Riad e anunciou que deixaria o cargo devido à influência iraniana no seu país. Disse temer acabar como o pai, Rafiq, morto em 2005.

O Hizbullah, milícia e partido político xiita, é a mais eficaz força militar do país —luta há anos contra Israel, que vem trabalhando em conjunto com Riad, e atua na Síria.

Como se vê, o sábado concentrou três desses eventos centrais: o expurgo, a renúncia de Hariri e o míssil.

Tudo indica que o último foi uma desculpa, até porque a ação saudita já matou 9.000 pessoas e não removeu do poder sobre boa parte do Iêmen os rebeldes que derrubaram o governo pró-Riad, reconhecido no exterior.

O chanceler iraniano, Javad Zarif, respondeu às acusações ao estilo Trump, no Twitter. Segundo ele, a Arábia Saudita "bombardeia o Iêmen, espalha cólera e fome, mas claro que culpa o Irã". Já o americano foi à rede para declarar apoio a MBS.

A questão humanitária tende a piorar com o anúncio de que Riad fechará acessos ao Iêmen. Há 900 mil infectados por cólera, e 60% dos 17 milhões de habitantes precisam de ajuda para comer.

A rixa entre Irã e Arábia Saudita é geopolítica, mas também religiosa. O reino é o berço do islã e centro de sua facção majoritária, o sunismo. Já a teocracia persa, além de grande produtora de petróleo, é o ponto focal do xiismo, ramo rival e minoritário, mas maioria em locais como o Iraque.

A opacidade do regime absolutista saudita dificulta a avaliação do que parece ser a consolidação do ramo de Salman no poder.

Diferentemente de outras monarquias, na Arábia Saudita os herdeiros podem sair de várias linhagens —todas próximas, dada a poligamia ainda vigente e exacerbada nos anos iniciais do reino.

Salman, por exemplo, era meio-irmão do antecessor. A escolha de MBS como herdeiro rompeu a tradição de busca de consenso entre ramos tribais rivais, uma acomodação que é a própria base da casa real de Saud.

MÍSSIL

O lançamento do míssil que está sendo usado como um eventual "casus belli" contra o Irã pela Arábia Saudita não é novidade no conflito entre Riad e os rebeldes houthi. O tipo de armamento usado, contudo, sugere o embasamento militar para a escalada retórica.

De 2015 para cá, foram reconhecidos pelo governo saudita 34 lançamentos. Até aqui, segundo levantamento feito pela consultoria Jane's, todos tinham alcance entre 250 km e 500 km, dentro do que seria esperado de estoques aos quais os rebeldes possam ter tido acesso.

Os mísseis balísticos do Iêmen, variantes do Scud, foram adquiridos da antiga União Soviética e da Coreia do Norte.

O míssil do sábado chegou perto da pista do aeroporto de Riad, a 630 km da fronteira iemenita mais próxima.

Isso leva a duas suspeitas. A principal, de que o Irã tenha fornecido capacitação e peças para que os rebeldes fizessem versões melhoradas de seus Scuds, conhecidas como a série Burkan.

O míssil foi o terceiro do tipo a ser abatido por sistemas antiaéreos Patriot. O alcance surpreendeu, embora possa ter sido obtido às custas da redução do peso da ogiva, o que muda o centro de gravidade do foguete e o torna mais instável e impreciso.

É muito difícil que mísseis inteiros, e seus lançadores maiores, tenham sido enviados prontos ao Iêmen, já que há um bloqueio naval na área e apenas um porto rebelde capaz de receber equipamento pesado, Al Hudaydah.

Sobram assim portos secundários e rotas pelo deserto no vizinho Omã, que só serviriam para peças menores. Já houve interceptações de navios com armas vindas do Irã, mas não peças de mísseis.

A segunda hipótese é de que o fornecimento tenha ocorrido antes da guerra, pela Coreia do Norte, de um modelo conhecido com Scud-D.

Segundo a Jane's, esse modelo teria alcance de 700 km, o tornando suspeito de ser o utilizado pelos houthis —que dificilmente dispensariam ajuda iraniana.

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