Folha de S. Paulo


Acusado ganhou visto na loteria, mas levava vida frustrante nos EUA

Mukhammadsharif Mamatkulov/Reuters
Casa dos pais de Sayfullo Saipov em Tashkent, Uzbequistão
Casa dos pais de Sayfullo Saipov em Tashkent, Uzbequistão

Sayfullo Saipov deixou seu país em 2010, logo depois de seu 22º aniversário e de ganhar na loteria o direito de residir nos Estados Unidos. Ele não pensou duas vezes e jamais voltou a Tashkent, a capital do Uzbequistão e sua cidade natal. Saipov vivia em movimento.

Ele ganhava a vida como caminhoneiro e registrou dezenas de milhares de quilômetros em viagens por todo o território dos Estados Unidos, de Denver a Detroit, de Canton (Massachusetts) a Salt Lake City. Ele se mudou de Estado a Estado, levando a mulher e os filhos, sempre em busca de alguma coisa - amigos no Ohio, uma vida nova na Flórida, parentes em Nova Jersey, onde ele começou a dirigir para a Uber seis meses atrás. Nada deu certo.

E na terça-feira, Saipov, 29, depois de passar horas na estrada sozinho e a quem um antigo amigo descreveu como alguém que carrega "monstros em seu interior", decidiu que seria motorista pela última vez, alugando uma caminhonete da Home Depot e a conduzindo em alta velocidade por uma trilha de bicicleta no West Side de Manhattan, segundo as autoridades de Nova York. Oito pessoas morreram atropeladas.

Como no caso de qualquer ataque desse tipo, não há maneira de determinar um só motivo. Ao que se sabe, Saipov teria decidido matar inocentes, a maioria dos quais turistas que estavam desfrutando um dia friozinho de outono, com céus azuis e temperatura de 14 graus. Quando se mudou para os Estados Unidos. Saipov era um muçulmano moderado, e tinha sonhos de prosperar. Casou-se com outra imigrante uzbeque, e teve três filhos.

Mas a vida não funcionou da maneira que ele planejava. Saipov não conseguiu emprego no ramo de hotelaria, em que ele trabalhava em seu país de origem. Tornou-se um homem colérico. Um imã na Flórida se preocupava com as interpretações cada vez mais distorcidas do islamismo que Saipov estava desenvolvendo.

"Eu costumava dizer a ele que não fosse tão emotivo, que lesse mais livros, e aprendesse primeiro sobre sua religião", disse o imã Abdul, que não quis que seu sobrenome fosse mencionado por medo de represálias. "Ele não aprendeu religião corretamente. Essa é a principal doença da comunidade islâmica."

St. Charles County Department of Corrections/KMOV via AP
Sayfullo Saipov, em foto divulgada pela polícia
Sayfullo Saipov, em foto divulgada pela polícia

Em Tashkent, Saipov era parte de uma família que estava bem de vida, praticava o islã tradicional e jamais aderiu ao extremismo, segundo o governo uzbeque. Os vizinhos dele no país disseram que Saipov jamais despertou suspeitas e que "sempre se comportou de maneira comedida e amistosa", afirmou o governo do Uzbequistão na quarta-feira. Ele jamais teve problemas com a polícia.

De 2005 a 2009, Saipov estudou no Instituto Financeiro de Tashkent, uma das maiores universidades do Uzbequistão, antiga república soviética na Ásia Central que na época era governada por Islam Karimov, autocrata considerado como um dos líderes mais repressivos do planeta. Depois de se formar, Saipov trabalhou como contador para o hotel Sayokhat, em Tashkent, um estabelecimento descrito como antiquado em sua decoração e não muito eficiente no serviço aos hóspedes.

E então ele ganhou um green card na loteria, o que significa que foi um dos poucos de seus concidadãos afortunados a ponto de escapar da repressão uzbeque e emigrar legalmente para os Estados Unidos.

Em março de 2010, Saipov desembarcou no Aeroporto Internacional Kennedy, em Nova York, em sua primeira chegada aos Estados Unidos, e se acomodou na casa de um amigo de seu pai, no subúrbio de Cincinnati. Ele ignorou as ordens de seu governo de que deveria se registrar no consulado uzbeque. Não tinha planos de retornar.

Saipov queria emprego no setor de hotelaria. Mas porque não falava muito inglês e não tinha muitos contatos, não teve sorte em sua busca de trabalho. O amigo de seu pai, que era caminhoneiro, pediu que ele encontrasse outro lugar para morar, porque não estava contribuindo para as despesas. Com isso, Saipov encontrou seu primeiro emprego: como caminhoneiro. E pelo final de 2011, havia encontrado um lar, um apartamento em Cuyahoga Falls, Ohio, a 320 quilômetros quilômetros de Cincinnati, em uma rua chamada Americana Drive.

Ele não era exatamente extremista. Saipov gostava de roupas finas, uma vaidade que os círculos islâmicos conservadores reprovam. Falava muitos palavrões, mesmo que se esforçasse para não fazê-lo. Atrasava-se sempre para as orações muçulmanas da sexta-feira, na Sociedade Islâmica de Akron e Kent. E seu conhecimento do Corão era apenas rudimentar.

Nos três anos em que viveu na área, ele começou a mudar, disse Mirrakhmat Muminov, caminhoneiro e ativista comunitário local. Tornou-se contencioso, até agressivo, e deixou a barba crescer. Muminov o descreveu como um homem que "carrega monstros em seu interior".

"Sempre acreditei, no fundo do coração, que ele terminaria preso por insultar ou surrar alguém", disse Muminov. "Ele tinha um caráter vulgar."

Ainda que o avô de Saipov às vezes viajasse do Uzbequistão para visitá-lo, seus pais nunca o fizeram, segundo Muminov. Saipov criou uma família. Em 2013, se casou com Nozima Odilova, uma imigrante uzbeque quase seis anos mais nova, que foi parar no Ohio depois de primeiro viver em Las Vegas, ao chegar aos Estados Unidos. Os dois tiveram uma filha, e em seguida uma segunda. Saipov disse a amigos que queria um menino.

No Ohio, Saipov abriu duas empresas como parte de sua carreira incipiente no ramo dos transportes - a Sayf Motors, lançada apenas 14 meses depois de sua chegada aos Estados Unidos, com um nome que fazia referência ao dele; e uma segunda empresa com nome mais adequado à região centro-oeste norte-americana: Bright Auto. Mas Saipov em geral dirigia para terceiros, empresas como a Abror Logistics, sediada em Paterson, Nova Jersey.

Ao longo dos anos, ele acumulou nove multas de trânsito, em Iowa, Missouri, Nebraska, Pensilvânia e Maryland. Essas multas servem quase como um retrato da vida que Saipov levava, na estrada.

Lá estava ele no Iowa, em dezembro de 2011, esperando por 35 minutos no acostamento da estrada enquanto as autoridades revistavam seu caminhão, verificavam seus documentos, lhe aplicavam uma multa e por fim o autorizavam a seguir viagem para Salt Lake City.

Em Iowa, uma vez mais, em abril de 2014, ele foi parado por uma hora por estar com o para-brisa rachado e por seu caminhão não contar com faixas refletoras. Ele estava transportando carros de Denver para Detroit.

E ele foi parado inúmeras vezes na balança do quilômetro 665 da rodovia interestadual 80, no Nebraska. Saipov foi multado lá por dirigir tempo demais sem a parada obrigatória para repouso, e por transportar uma carga ligeiramente maior que a permitida.

No final de 2015, Saipov se mudou para Tampa, Flórida, em busca de alguma coisa. Seus problemas se agravaram, segundo Muminov. Encontrar trabalho se tornou difícil. O dinheiro dele acabou. E a raiva de Saipov explodiu.

"Ele tinha problemas de caráter", disse o imã Abdul.

Saipov passou a se obcecar mais e mais com os marcos físicos do islamismo: a barba longa, as calças com bainha na altura dos tornozelos. Mas jamais falava em violência.

Eduardo Muñoz Alvarez/AFP
Policiais e agentes do FBI investigam o apartamento de Sayfullah Saipov em Paterson, Nova Jersey
Policiais e agentes do FBI investigam o apartamento de Sayfullah Saipov em Paterson, Nova Jersey

Em março do ano passado, encontrou um novo emprego, na IIKL Transport, do Illinois. Um dirigente da empresa, que pediu que seu nome não fosse mencionado porque não queria ser associado a alguém acusado de terrorismo, descreveu Saipov como "um cara comum", que "trabalhava nos 48 Estados contíguos dos Estados Unidos".

Foi nessa época que ele teve seu maior problema com a lei, por não ter pago uma multa, o que resultou em um mandado de prisão. Ele foi apanhado em um posto de pesagem no Missouri. Em 20 de outubro de 2016, passou 40 minutos preso na cadeia do condado de St. Charles, e saiu pagando uma fiança de US$ 200 com seu cartão de crédito.

Ao longo dos anos, ele não causou grande impressão, a não ser pelas multas. "Não me lembro dele", disse Jim Klepper, o advogado que representou Saipov em uma multa no condado de Pike, Pensilvânia. "Ninguém aqui se lembra dele", disse o tenente Michael McKee, do departamento penitenciário do condado de St. Charles.

No segundo trimestre deste ano, Saipov disse a amigos que queria morar mais perto da família de sua mulher, que vive em Brooklyn, e por isso a família se mudou para Paterson - ele, a mulher, as duas filhas e um filho nascido na metade do ano. Saipov começou a dirigir para a Uber. Mas não estava feliz. Disse a amigos e conhecidos que planejava voltar para o Uzbequistão. "Aqui é um tédio", ele disse. "Não há nada para fazer."

Mas cerca de um ano atrás, Saipov começou a tramar um ataque, segundo as autoridades, e passou a baixar vídeos do Estado Islâmico. Dois meses atrás, decidiu como ele agiria, a maneira de infligir o máximo de danos. E evidentemente escolheu um caminhão.


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