Folha de S. Paulo


Birmaneses negam limpeza étnica e ódio aos rohingyas

O sacerdote budista recolheu as pernas para baixo da túnica e começou a explicar.

Os muçulmanos rohingya não pertencem a Mianmar, e nunca pertenceram, segundo ele. Sua fertilidade permitiu que eles superassem a população budista local. Mas agora, de alguma maneira, os rohingyas parecem ter desaparecido.

"Agradecemos ao senhor Buda por isso", disse Thu Min Gala, o abade de 57 anos do mosteiro Damarama em Sittwe, capital do Estado de Rakhine, no oeste de Mianmar. "Eles roubaram nossa terra, nossa comida e nossa água. Nunca os aceitaremos de volta."

Um corpo avassalador de relatos publicados explicou em detalhe a campanha do Exército de Mianmar de assassinatos, estupros e sequestros em Rakhine, que levou mais de 600 mil rohingyas a deixar o país desde o final de agosto, no que a ONU considera o mais rápido deslocamento de um povo desde o genocídio em Ruanda.

Mas em Mianmar, e no próprio Rakhine, nega-se com firmeza a ocorrência de limpeza étnica.

A divergência entre como Mianmar e grande parte do mundo exterior veem os rohingyas não se limita a um segmento da sociedade local. Tampouco o ódio em Mianmar pelo grupo muçulmano geralmente sem Estado pode ser considerado uma atitude marginal.

Autoridades do governo, políticos de oposição, líderes religiosos e até ativistas locais dos direitos humanos se uniram por trás dessa narrativa: os rohingyas não são cidadãos por direito de Mianmar, país de maioria budista, e agora, por meio do poder de um islamismo ressurgente no mundo, a minoria tenta falsamente capturar a simpatia do mundo.

Postagens nas redes sociais ampliaram a mensagem, afirmando que trabalhadores de ajuda internacionais defendem abertamente os rohingyas. Por isso, o governo de Mianmar bloqueou o acesso de agências de ajuda aos rohingyas ainda presos em Mianmar –cerca de 120 mil confinados em acampamentos no centro de Rakhine e dezenas de milhares em condições desesperadas no norte.

A resposta oficial aos relatos da ONU sobre o incêndio de aldeias inteiras pelos militares e o ataque contra civis foi insistir que os rohingyas estão fazendo isso contra si próprios.

"Não há casos de militares matando civis muçulmanos", disse o doutor Win Myat Aye, ministro do bem-estar social do país e chefe em Rakhine do partido Liga Nacional pela Democracia. "Os muçulmanos mataram seu próprio povo muçulmano."

Quando questionado sobre as evidências contra os militares, o ministro comentou que o governo de Mianmar não enviou investigadores a Bangladesh para censurar o depoimento dos rohingyas em fuga, mas que ele levantaria a possibilidade de fazer isso em uma futura reunião.

"Obrigado por nos aconselhar sobre essa ideia", disse ele.

Editoria de Arte/Folhapress
Mianmar
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Os rohingyas, que falam um dialeto bengali e tendem a parecer diferentes da maioria dos outros grupos étnicos de Mianmar, têm raízes em Rakhine há várias gerações. As tensões comunitárias entre os rohingyas e os budistas étnicos de Rakhine explodiram na Segunda Guerra Mundial, quando Rakhine se aliou aos japoneses, enquanto os rohingyas preferiram os britânicos.

Apesar de muitos rohingyas serem considerados cidadãos quando a Birmânia se tornou independente, em 1948, a junta militar que assumiu o poder em 1962 começou a privá-los de seus direitos. Depois que uma lei de cidadania restritiva foi aprovada em 1982, a maioria dos rohingyas ficou sem Estado.

Até o nome rohingya, com o qual o grupo étnico se identificou mais nos últimos anos, foi retirado deles. O governo de Mianmar costuma se referir aos rohingyas como bengalis, implicando que eles pertencem a Bangladesh. O público tende a chamá-los por um epíteto usado para todos os muçulmanos em Mianmar: "kalar".

A nomenclatura é tão delicada que, em um discurso neste mês, Aung San Suu Kyi, o Prêmio Nobel da Paz e líder de fato do governo, referiu-se somente a "os que cruzaram a fronteira para Bangladesh".

Alguns político da etnia rakhine estão saudando o êxodo rohingya como algo positivo.

"Tudo o que os bengalis aprendem em suas escolas religiosas é atacar e matar brutalmente", disse Khin Saw Wai, um deputado rakhine da cidade de Rathedaung. "É impossível vivermos juntos no futuro."

Os monges budistas, árbitros da moral em uma terra piedosa, estiveram na vanguarda de uma campanha para desumanizar os rohingyas. Em vídeos populares, monges extremistas se referem aos rohingyas como "cobras" ou "piores que cães".

Diante do mosteiro de Thu Min Gala em Sittwe, algumas placas refletiam um senso de realidade diferente. Uma dizia que o mosteiro, que abriga rakhines étnicos que fugiram da zona de conflito, não aceitaria doações de qualquer agência internacional. A outra advertia que grupos ecumênicos não são bem-vindos.

O abade afirmou que as autoridades de Rakhine avistaram um carro da Cruz Vermelha cheio de armas destinadas a militantes rohingya que realizaram ataques contra as forças de segurança em agosto. Thu Min Gala afirmou que bastões de dinamite estavam embrulhados em papel com o logotipo da Cruz Vermelha. Esta negou as acusações.

"Não confiamos na sociedade internacional", disse o abade. "Eles estão só do lado dos terroristas."

Em outro mosteiro em Sittwe, um abade idoso, Baddanta Thaw Ma, interrompeu minha conversa com um jovem monge batendo no ar diante do meu rosto. "Vá! Vá! Vá!", gritou ele em inglês, antes de mudar para o dialeto rakhine. "Vá embora, estrangeiro! Vá embora, amante de kalar."

O sentimento público contra os muçulmanos –que são cerca de 4% da população de Mianmar, abrangendo vários grupos étnicos, entre os quais os rohingyas– se espalhou além de Rakhine. Nas eleições de 2015, nenhum partido político importante elegeu um candidato muçulmano. Hoje não há muçulmanos no Parlamento, pela primeira vez desde a independência.

As mensagens nas redes sociais conduziram grande parte do ódio em Mianmar. Apesar de o acesso generalizado aos telefones celulares só ter começado há alguns anos, sua penetração hoje é de aproximadamente 90%.

Para muitas pessoas, o Facebook é a única fonte de notícias, e eles têm pouca experiência em separar notícias falsas de reportagens verossímeis.

Uma mensagem amplamente divulgada no Facebook, de um porta-voz do gabinete de Suu Kyi, enfatizou que biscoitos do Programa Mundial de Alimentos da ONU foram encontrados em um campo de treinamento de militantes rohingya. A ONU chamou a postagem de "irresponsável".

Mesmo entre autoridades que poderiam defender os direitos humanos, a frustração se voltou para os críticos estrangeiros. Silenciosamente, alguns defendem o fracasso de Suu Kyi em convocar os militares para proteger os rohingyas, dizendo que seria um suicídio político em um país onde o ódio pelos rohingyas é tão generalizado. Eles veem a recente pressão internacional, no máximo, como ignorante das complexidades domésticas e, no mínimo, como uma tentativa de prejudicar o desenvolvimento de Mianmar.

"Pedimos à comunidade internacional que reconheça que esses muçulmanos são imigrantes ilegais de Bangladesh e que esta crise é uma infração à nossa soberania", disse Nyan Win, um porta-voz da Liga Nacional pela Democracia, que divide o poder com os militares em Mianmar. "Essa é a coisa mais importante na questão de Rakhine."

Ko Ko Gyi, um defensor da democracia que passou 17 anos preso pelos militares que governaram Mianmar, também citou o interesse nacional.

"Fomos defensores dos direitos humanos por muitos anos e sofremos durante muito tempo, mas estamos juntos sobre essa questão porque precisamos apoiar nossa segurança nacional", disse ele.

"Somos um país pequeno que fica entre a Índia e a China, e o DNA de nossos ancestrais está lutando pela sobrevivência", disse Ko Ko Gyi. "Se vocês no Ocidente nos criticarem muito, nos empurrarão para os braços da China e da Rússia."


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