Folha de S. Paulo


União Soviética era demoníaca, afirma bispo ortodoxo russo no Brasil

"No dia 7 de novembro, a Revolução Russa completa 100 anos..." O bispo Gregor Petrenko, 71, franze a testa quando a Folha menciona a efeméride. "Não sei nem como estão comemorando. Aqui celebramos com a bandeira a meio mastro, como um funeral, dando graças a Deus que [a União Soviética] tenha sumido."

Para o líder da Igreja Ortodoxa Russa no Brasil, não há nada festivo no movimento que varreu do mapa 300 anos da dinastia dos Románov. "A gente não pode dizer ódio porque ódio é pecado. Mas não aprovamos socialismo em nenhuma forma. É demoníaco."

Marcus Leoni/Folhapress
Gregor Petrenko, 71, líder da Igreja Ortodoxa Russa no Brasil, na Paróquia da Santíssima Trindade
Gregor Petrenko, 71, líder da Igreja Ortodoxa Russa no Brasil, na Paróquia da Santíssima Trindade

Nem o colapso, 26 anos atrás, do império deslanchado por Vladimir Lênin (1870-1924) e agigantado por Josef Stálin (1878-1953) foi capaz de exorcizar o fantasma do comunismo para parte da comunidade de ex-soviéticos e seus descendentes que fincaram raízes em solo brasileiro.

"O comunismo continua ativo", afirma Petrenko, sentado num banco em frente à sua igreja, na zona leste paulistana. Vizinha a comércios como a pastelaria Yamaguchi e a loja Conquist, a Paróquia da Santíssima Trindade à primeira vista parece uma igreja católica romana, não fosse sua típica torre russa, com abóboda em espiral azul.

Os dois lados se declaram católicos, mas ortodoxos não reconhecem a autoridade papal desde o Cisma do Oriente com o Vaticano, em 1054.

Enquanto dirige pelas vilas Alpina e Zelina, dois bairros paulistanos que concentram comunidades do Leste Europeu, a engenheira química Tamara Dimitrov, 56, lembra do pânico na família quando Lula (PT) superou três derrotas prévias e enfim se elegeu presidente, em 2002. "Minha avó não dormiu a noite inteira."

O bispo e a engenheira vivenciaram a ditadura militar brasileira (1964-1985), que adotou oratória anticomunismo para justificar a perseguição a seus críticos, num mundo então fraturado pela Guerra Fria.

Nenhum dos dois guarda lembranças negativas do período. O regime até fazia algumas confusões, diz Dimitrov, lembrando que um clube russo foi fechado por injustificada fama de ser pró-Stálin.

Para o líder religioso, contava a favor dos militares ser "contra o comunismo" e lhe dar "segurança para andar na rua", ao contrário de hoje, "quando ficamos presos, e os bandidos andam soltos".

Petrenko é taxativo: nem ditadura (de direita ou esquerda), nem democracia. "O único regime abençoado por Deus é a monarquia." E não qualquer uma: "Monarquia de verdade não existe mais. A do Brasil era maçom. O último rei ungido por Deus foi o czar [Nicolau 2º, morto em 1918]".

Ele tem um motivo pessoal para repudiar o stalinismo: soviéticos aprisionados pelo inimigo alemão na Segunda Guerra eram "eliminados" pelo próprio governo, caso voltassem, diz. "Tinham que se matar [se fossem pegos pelo lado rival], para não passar a vergonha de virar prisioneiro. Recebiam, junto com armas, cápsulas de cianureto."

Um deles foi o pai do bispo —que também tem sua prole, já que o celibato imposto a padres pelo Vaticano não se aplica aos ortodoxos russos. Como tantas outras, a família de Petrenko, então, buscou refúgio no Brasil, conta.

Presidente da Associação de Compatriotas Russos do Brasil, Galina Chevtchuk, "70 e poucos anos" (prefere não revelar a idade exata), não tem "nenhuma queixa" sobre os tempos soviéticos. "Estudei engenharia de graça, tínhamos apartamento e medicina, uma casa grande com quatro dormitórios, tudo de graça. Para nós era só alegria", conta a russa, que casou com um brasileiro e mudou de país.

Marcus Leoni/Folhapress
Matrioskas são expostas na Feira Cultural do Leste Europeu, na Vila Prudente (zona leste de São Paulo)
Matrioskas são expostas na Feira Cultural do Leste Europeu, na Vila Prudente (zona leste de São Paulo)

CONVIVÊNCIA

As digitais russas se esparramam pela história brasileira. Batizada Chaya Pinkhasovna Lispektor na Ucrânia natal (então União Soviética), a escritora Clarice Lispector chegou em 1922 ao Recife. Também da União Soviética vieram o pintor Lasar Segall, o dono da extinta TV Manchete, Adolpho Bloch, e a família de atores como Nathalia Timberg e Vladimir Brichta.

O primeiro leite condensado produzido no país veio da fábrica em Taubaté (SP) do imigrante siberiano Anatóli Chnee, no fim dos anos 1940.

Menos doce, hoje, é a convivência de ex-soviéticos na Vila Zelina. Em 2013, a comunidade lituana encrencou quando a associação do bairro propôs implantar por ali orelhões em formato de matrioska, as tradicionais bonecas russas que se encaixam uma dentro da outra. O projeto acabou cancelado porque, dizia o lado lituano, a coisa ficou por demais russa.


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