Folha de S. Paulo


Análise

Ação militar põe fim ao sonho de um Curdistão independente

Foi uma batalha rápida. Kirkuk caiu em menos de 24 horas. As forças armadas iraquianas e as milícias xiitas, apoiadas pelo Irã, tomaram uma das mais ricas regiões petrolíferas do Iraque sem muita resistência.

O dia nem havia acabado e Irã e Turquia, inimigos íntimos pela hegemonia no Oriente Médio, congratularam Bagdá pela vitória e prometeram apoio, inclusive militar. Era noite no Curdistão quando Donald Trump mandou avisar que não tomaria lado na disputa.

Ahmad al-Rubaye/AFP
Forças iraquianas patrulham rua de Kirkuk durante operação contra soldados curdos nesta segunda (16)
Forças iraquianas patrulham rua de Kirkuk durante operação contra soldados curdos nesta segunda (16)

O sonho curdo de ter um país para chamar de seu foi, uma vez mais, esmagado. Assim como tantas vezes, os curdos se viram sozinhos na eterna luta pela independência. Desta vez, no entanto, não sem aviso.

Desde que o presidente curdo, Massoud Barzani, convocou um plebiscito sobre a independência da região, aliados e inimigos alertaram que a votação era um erro.

Bagdá avisou que haveria retaliação. Ancara se colocou contrária, assim como Teerã. Os EUA recomendaram que o pleito fosse cancelado. Mas a votação de 25 de setembro teve vitória do "sim" com 90% dos votos.

A retomada de Kirkuk num 16 de outubro é simbólica. Foi em 16 de outubro de 1927 que americanos e iraquianos encontraram o primeiro grande poço de petróleo no país, ali mesmo em Kirkuk. Foi também em 16 de outubro, de 2016, que curdos e iraquianos iniciaram a ofensiva que iria resultar na retomada de Mossul do Estado Islâmico.

Foi a combinação desses dois elementos, Estado Islâmico e petróleo, que fez os curdos acreditarem que dessa vez seria possível, enfim, deixar de ser a maior nação sem estado do mundo.

A chegada dos militantes extremistas no Norte do Iraque foi benéfica para o Curdistão. Despreparados, os soldados do Exército iraquiano fugiram ao avistar a primeira bandeira negra no horizonte.

Coube aos soldados curdos peshmergas, com apoio aéreo americano, segurar o avanço do EI. Impediram que os extremistas entrassem em seu território e os expulsaram de áreas historicamente disputadas com Bagdá. Assim, ampliaram as fronteiras tradicionais do Curdistão em cerca de 50 quilômetros.

Kirkuk foi o maior ganho curdo. Rica em petróleo, permitiu que a minoria desafiasse Bagdá e abrisse mão dos repasses feitos pelo poder central. Enquanto os iraquianos estavam preocupados demais com o EI, o Curdistão passou a exportar petróleo de maneira independente.

Dos cerca de 600 mil barris que enviava até todos os dias para a Turquia, cerca de 350 mil vinham de Kirkuk. A estratégia iniciada em 2014, no entanto, esbarrou nas quedas sucessivas do preço do combustível e o Curdistão passou os últimos dois anos tendo imensas dificuldades para cobrir seus gastos militares e sua máquina pública. As dívidas já superam a casa dos US$ 20 bilhões.

Ao que parece, Bagdá atingiu seus objetivos. Retomou Kirkuk e empurrou os peshmergas para a antiga fronteira. Os curdos dificilmente irão retaliar, principalmente ao perceberem que estão sós e, agora, sem 50% dos recursos que os financiavam.

Barzani passará a ser ainda mais ameaçado pela oposição. A tendência agora é um Curdistão mais dividido, mais pobre e mais instável, bastante parecido com os tempos em que Saddam Hussein (1937-2003) estava no poder e muito distante do sonho de se tornar um país independente.


Endereço da página:

Links no texto: