Folha de S. Paulo


OPINIÃO

Fim do 'globalismo', como quer Trump, ameaça a paz mundial

O epíteto que define a Era Trump é "globalista". Esse é o termo de insulto para todos os fins que o presidente e seus mais fervorosos apoiadores gritam a qualquer pessoa que discorde de sua agenda populista.

Durante a campanha no ano passado, Donald Trump tuitou que a opção era "entre o americanismo" e o "globalismo corrupto" de Hillary Clinton.

Seu antigo estrategista Steve Bannon, que pensa que "os globalistas estriparam a classe trabalhadora americana e criaram uma classe média na Ásia", teria chamado o assessor econômico Gary Cohn, um ex-presidente do Goldman Sachs, de "Gary Globalista".

Um assessor do Conselho de Segurança Nacional foi demitido pelo assessor de Segurança Nacional, H.R. McMaster, por distribuir um memorando afirmando que Trump é ameaçado por uma coalizão infame de "globalistas", juntamente com "atores do Estado profundo", "banqueiros", "islamistas" e "republicanos do establishment" (seria divertido imaginar um encontro de todos esses inimigos de Trump).

Está na hora de alguém se manifestar a favor do "globalismo", termo que só é insultante se você não ponderar as alternativas. Claro, o globalismo tem seus lados negativos. Mas, perguntamo-nos, o que é o oposto de globalismo? Provincianismo? Tribalismo? Nacionalismo? Nenhum deles é interessante.

Provincianismo, segundo o dicionário, é "o modo de vida ou de pensamento característico das regiões fora da capital de um país, especialmente quando considerado não sofisticado ou de mentalidade estreita". Essa é uma descrição bastante boa de Trump e seus seguidores, mas supostamente uma que eles não adotariam —sem dúvida eles consideram essa definição emblemática do desprezo que as elites cosmopolitas lhes dedicam.

Tribalismo? Foi isso o que nos deu os genocídios em Ruanda e na antiga Iugoslávia, e que hoje é responsável pelo massacre na Síria e no Iêmen e pela limpeza étnica dos rohingya em Mianmar. Está até levando à violência na Espanha, onde a polícia nacional quebrou cabeças para impedir um referendo sobre a independência da Catalunha. E, como comenta Andrew Sullivan em um brilhante ensaio na revista "New York", o tribalismo está envenenando o clima político nos EUA.

Nacionalismo? É a ideologia defendida no passado pelos militaristas alemães e japoneses e hoje por ditadores em Moscou, Pequim, Caracas, Harare, Ancara e Pyongyang, entre outros lugares. Uma forma diluída de nacionalismo pode ser benigna, mas a variedade à toda prova foi responsável por pelo menos tantas atrocidades quanto o tribalismo, ideologia da qual muitas vezes não se distingue.

Que horrores, em comparação, nos deu o globalismo? Se você escutar as arengas dos apoiadores mais loucos de Trump, poderia imaginar que a ONU, o Conselho de Relações Exteriores e a Comissão Trilateral despacharam hordas de patrulheiros em helicópteros pretos para reprimir nossas liberdades, enquanto George Soros, os Rothschilds e outros "banqueiros internacionais", que por acaso são judeus, destroem nossa economia.

Existe uma longa tradição de promotores de conspirações à margem da extrema-direita, remontando à paranoia do século 19 sobre os maçons, a Igreja Católica, a rainha da Inglaterra e —um tema constante— banqueiros judeus (infelizmente, o antissemitismo nunca sai de moda).

Desnecessário dizer que essas teorias conspiratórias são malucas. Eu trabalhei no Conselho de Relações Exteriores durante 15 anos e nunca vi um helicóptero preto pousar na cobertura. Nunca sequer presenciei uma conversa sobre destruir a soberania americana. As pessoas que acreditam nessas coisas provavelmente também acreditam que os alienígenas estão se comunicando com elas por meio de suas obturações dentárias.

Raciocinar com elas é impossível. Mas também há formas mais brandas de preconceito antiglobalista, e para os que detêm tais opiniões vale a pena citar como o registro real da globalização foi benéfico.

Em séculos passados, é verdade, a globalização muitas vezes foi conquistada à ponta de sabre ou de arma; impérios como o mongol, o otomano, o espanhol, o britânico e o francês puseram povos e culturas díspares em estreito contato ao disseminar seu próprio domínio imperial. Mas desde o século 19 o meio predominante de globalização foi o livre comércio e a livre migração —o movimento voluntário de bens e pessoas.

Houve uma grande onda de globalização anterior a 1914, quando milhões de pessoas migraram do Velho Mundo para o Novo, e bens e investimentos fluíram ao redor do globo. Segundo uma estimativa, os ativos estrangeiros em 1914 representaram uma porcentagem do PIB mundial maior do que em qualquer outro momento até 1985. O resultado foi uma vasta melhora no padrão de vida desfrutado por homens e mulheres comuns no mundo ocidental.

Soando muito como um precursor de Jeff Bezos, John Maynard Keynes escreveu que em 1914 "o morador de Londres podia encomendar por telefone, tomando seu chá matinal na cama, os vários produtos da Terra toda, na quantidade que considerasse adequada, e razoavelmente esperar a entrega à sua porta".

Essa também foi uma era em que os ancestrais de muitos americanos de hoje —incluindo Donald Trump e Steve Bannon– chegaram a nossas plagas: a família Trump veio da Alemanha e a de Bannon, da Irlanda. Naquele tempo, as fronteiras eram tão porosas que não havia necessidade de passaportes, vistos ou ficha corrida.

Se as fronteiras fossem rigidamente policiadas na época como são hoje, o "refugo miserável" da Europa jamais teria dado em nossa "praia pujante" e não seríamos a nação que somos hoje.

A época áurea do globalismo parece ainda melhor comparada com o que veio depois. A Primeira Guerra Mundial, seguida do isolacionismo, protecionismo e iliberalismo no período entre guerras, destruiu aquela era dourada do fim do século e trouxe um mundo de horrores inimagináveis. Só depois da morte de 100 milhões de pessoas (o número combinado das duas guerras mundiais) uma nova era de globalismo se ergueu das ruínas.

Os EUA assumiram a liderança para produzi-la, criando instituições como o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt, precursor da Organização Mundial do Comércio) para reduzir as barreiras comerciais, e instituições como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para manter a paz coletiva.

Com o incentivo americano, os europeus decidiram passar a cooperar em vez de lutar, levando à criação, sucessivamente, da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, a Comunidade Econômica Europeia e depois, em 1993, a União Europeia.

Grandes países asiáticos como Japão, Coreia do Sul e China protegeram mais enciumadamente sua soberania, mas também se integraram à economia mundial em vez de seguir políticas autárquicas como haviam feito antes.

O resultado dessas tendências foi uma diminuição sem precedentes nas guerras e um aumento da geração de riqueza. Steven Pinker, de Harvard, e Joshua Goldstein, da Universidade Americana, relatam que entre 1945 e 2011 o índice de mortalidade global caiu de 22 por 100 mil pessoas para 0,3, antes de subir para 1,4 em 2014 em consequência da guerra civil na Síria, a disseminação do Estado Islâmico e outros conflitos.

Mas mesmo esse índice elevado está muito abaixo do que a humanidade teve de suportar durante a maior parte de sua história sangrenta anterior à era pós-1945, quando guerras de agressão foram contidas pela lei internacional apoiada pelo poderio militar ocidental.

Enquanto isso, Max Roser e Esteban Ortiz-Ospina, de Oxford, calculam que a porcentagem da população global que vive na extrema pobreza diminuiu de 84% em 1820 para 16% em 2010 —e continua caindo (eles calcularam que teria caído abaixo de 10% em 2015.).

Isso não é total ou principalmente consequência da globalização —avanços tecnológicos como a Revolução Industrial e a Revolução Verde merecem a maior parte do crédito—, mas ela teve um papel importante em disseminar inovações aos que precisam delas. O mundo seria ainda mais rico hoje se não fosse pelo período sombrio entre 1914 e 1945, quando a globalização entrou em retrocesso.

Certamente, o globalismo pode ter efeitos colaterais negativos —pode ser explorado por criminosos e terroristas e pode ser perturbador para as comunidades tradicionais, sejam aldeias na África ou cidades industriais nos Apalaches. É legítimo criar programas de bem-estar social e educação para melhorar o impacto dessas mudanças nos trabalhadores que correm o risco de ser deixados para trás.

Mas o globalismo não é uma trama nefasta para destruir a soberania, como parecem imaginar os Trumpkins. A professora da Universidade de Londres Or Rosenboim, que escreveu um livro sobre o assunto, comenta que "o globalismo há muito permitiu um lugar para o nacionalismo e a soberania nacional enquanto sugeria que algumas necessidades e práticas humanas transcendem as fronteiras nacionais".

Questões transnacionais incluem a promoção do comércio e a batalha contra as violações dos direitos humanos, doenças, pobreza, terrorismo e cartéis do crime. O fato de que há mais cooperação internacional do que costumava haver em todas essas áreas não é, como imagina Trump, um complô contra a América, mas sim um complô da América para aumentar seu bem-estar —e o de seus aliados e parceiros comerciais.

Enquanto o globalismo pode ser perturbador e difícil de lidar em curto prazo —ele destrói alguns empregos e cria outros—, seus efeitos em longo prazo são enormemente benéficos.

A principal ameaça que enfrentamos hoje é que o globalismo pode mais uma vez entrar em retrocesso como fez em 1914, porque os EUA —durante tantas décadas seu principal defensor— podem agora, sob Trump, tornar-se um obstáculo em vez de uma ajuda ao comércio e à cooperação transnacionais.

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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