Folha de S. Paulo


Países africanos tentam conter importação de roupas usadas

Diana Zeyneb Alhindawi/"The New York Times"
Loja de roupas na cidade de Kigali, Ruanda
Loja de roupas na cidade de Kigali, Ruanda

No Quênia elas são chamadas de "roupas de brancos mortos". Em Moçambique são as "roupas da calamidade". São os apelidos dados às roupas usadas e indesejadas do Ocidente que muitas vezes acabam na África.

Agora, um punhado de países do leste da África não quer mais que despejem neles os artigos de segunda mão porque estão tentando fabricar suas próprias vestimentas. Mas eles dizem que estão sendo punidos por isso –pelos EUA.

Na África oriental, Ruanda, Quênia, Uganda, Tanzânia, Sudão do Sul e Burundi tentaram reduzir as importações de roupas e sapatos usados no último ano, dizendo que o influxo de artigos velhos mina seus esforços para formar indústrias têxteis domésticas. Os países querem impor uma proibição total até 2019.

Ruanda, em particular, busca conter a importação de roupas de segunda mão não apenas com o fim de proteger a indústria nascente local mas também porque diz que vestir roupas usadas compromete a dignidade de sua população.

Mas quando os países da África oriental aumentaram suas tarifas de importação sobre roupas usadas no ano passado –a um nível tão alto que constituíram uma proibição de fato–, a reação foi significativa.

Em março, o Escritório do Representante Comercial dos EUA ameaçou retirar quatro dos seis países do leste da África incluídos na Lei de Oportunidade e Crescimento da África, um acordo preferencial destinado a aumentar o comércio e o crescimento econômico em toda a África subsaariana (Burundi e o Sudão do Sul, perturbados por tumultos populares, já tinham sido expulsos do acordo porque seus governos foram acusados de cometer violência de Estado).

Sob o acordo, produtos como petróleo, café e chá podem entrar no mercado americano com tarifas baixas. Mas a Casa Branca tem o direito de encerrar o acordo com um país se achar que o relacionamento não beneficia os EUA.

O presidente de Ruanda, Paul Kagame, que foi o líder mais enfático pela proibição das roupas usadas nos países do leste africano, disse que a região deve seguir em frente com a proibição, mesmo que isso signifique sacrificar parte do crescimento econômico.

"Temos de crescer e estabelecer nossas indústrias", disse Kagame em junho. "Essa é a opção que achamos que devemos adotar. Podemos sofrer consequências. Mesmo quando confrontados com opções difíceis, sempre há um caminho."

Diana Zeyneb Alhindawi/"The New York Times"
Trabalhadores em indústria têxtil em Utexrwa, Ruanda
Trabalhadores em indústria têxtil em Utexrwa, Ruanda

A África oriental importou US$ 151 milhões em roupas e calçados usados em 2015, principalmente da Europa e dos EUA, onde os consumidores compram habitualmente roupas novas e descartam as antigas, muitas vezes dando-as a instituições de caridade. Pelo menos 70% das vestimentas doadas acabam na África, segundo a Oxfam, uma entidade beneficente britânica que também vende roupas usadas e doadas ao continente africano.

A ameaça dos EUA, segundo autoridades da região, é um exemplo de um país ocidental pressionando países que tentam ir além do que costuma definir o continente: a exportação de matérias-primas, e não produtos acabados.

Para países como Ruanda, um pequeno Estado sem saída para o mar, com poucos recursos naturais para extrair e exportar, construir uma manufatura local é vital para o desenvolvimento, afirmam as autoridades.

"Política e moralmente é errado", disse Mukhisa Kituyi, o secretário- geral da Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento da ONU e ex-ministro do Comércio do Quênia, sobre a ameaça dos EUA de tirar os países do acordo comercial. "A liderança de Ruanda e da África oriental está certa e não deve perder de vista a imagem maior que eles têm em mente."

O relacionamento comercial entre os EUA e a África oriental deve se basear no respeito mútuo, acrescentou ele, "e não seguir o caminho da Inglaterra do século 19, quando começou uma guerra com a China por causa do ópio", disse Kituyi sobre a determinação da Grã-Bretanha de abrir os mercados chineses para vender drogas.

A África oriental poderia exportar confecções no valor de US$ 3 bilhões por ano em uma década, segundo a firma de consultoria McKinsey.

Por trás da reação americana à proibição da África oriental está um grupo de 40 exportadores de roupas usadas, conhecido como Associação de Materiais Secundários e Têxteis Reciclados. Ela diz que 40 mil empregos nos EUA, como triagem e empacotamento de roupas, estão ameaçados. As roupas descartadas pelos americanos, segundo a associação, acabarão nos aterros dos EUA e prejudicarão o meio ambiente se não forem vendidas no exterior.

A organização, que descreve as tarifas da África oriental como "tirando vantagem da generosidade dos EUA", pressionou por uma reação do governo, dizendo que os países africanos infringem regras e exigindo que eles mostrem que estão "fazendo progresso" no sentido de eliminar as barreiras comerciais para produtos e investimentos americanos.

"É difícil argumentar que os EUA devem continuar dando acesso preferencial a seu mercado se um país toma medidas que prejudicam as empresas americanas", disse Grant Harris, que serviu como principal assessor do ex-presidente Barack Obama em questões relacionadas à África.

Enquanto as economias africanas eram pressionadas por instituições como o FMI (Fundo Monetário Internacional) para abrir seus mercados, o Ocidente protegia suas indústrias têxteis restringindo a importação de fios e tecidos de países em desenvolvimento.

"Remover as barreiras comerciais facilitou a importação e exportação de coisas, mas tornou as economias africanas mais vulneráveis às importações, e as indústrias manufatureiras em particular tornaram-se não competitivas", disse Andrew Brooks, autor de "Clothing Poverty: The Hidden World of Fast Fashion and Second-hand Clothes" [Vestindo a pobreza: o mundo oculto da moda rápida e das roupas de segunda mão].

A atual disputa sobre o acordo comercial, disse ele, expõe "a barriga da globalização".

O Quênia, por exemplo, tinha 500 mil trabalhadores na indústria de confecções algumas décadas atrás. Esse número encolheu para 20 mil hoje, e a produção é voltada para a exportação de roupas geralmente caras para o mercado local.

Em Gana, os empregos na indústria têxtil caíram 80% entre 1975 e 2000.

Muita gente em Zâmbia, que produzia roupas localmente 30 anos atrás, hoje só pode comprar artigos de segunda mão e importados.

Embora muitos apoiem os esforços dos governos para construir indústrias têxteis nacionais, eles dizem que a proibição das roupas usadas deve ser feita gradualmente.

E fica a pergunta de se Ruanda, Tanzânia e Uganda estão prontas para construir uma indústria têxtil própria.

Ingredientes vitais para que isso aconteça ainda são inexistentes, e cortar a importação de roupas usadas somente não deverá resolver o problema, segundo alguns no setor.

Os custos de energia e transporte em Ruanda estão entre os mais altos da África, faltam trabalhadores qualificados em alfaiataria e manufatura leve, e as importações de materiais de alta qualidade como tecido e fios são extremamente caras.

Há também a questão do tamanho e do poder aquisitivo do mercado consumidor local. "Temos um mercado pronto aqui para consumir roupas 'made in Ruanda'?", perguntou Johannes Otieno, diretor da Utexrwa, que faz uniformes para o Exército, a polícia e hospitais.

Otieno disse que é contra a proibição das roupas usadas no leste da África, questionando o que Ruanda faria se os EUA a expulsassem do acordo comercial.

"Um país não pode sobreviver sozinho", disse ele. "Dependemos dos EUA para muitas coisas. Não somos estáveis o suficiente para dizer: 'Não precisamos mais de vocês'."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves


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