Folha de S. Paulo


Tecnologia, e não governo, está relativizando a verdade, diz jornalista

Darren Staples - 1.out.2017/Reuters
Esculturas da primeira-ministra britânica, Theresa May, e de seus ministros pedem fim do
Esculturas da primeira-ministra britânica, Theresa May, e de seus ministros pedem fim do "brexit"

Autor de "Post-Truth" (Ebury, 2017) e colunista do jornal "The Guardian", o inglês Matthew d'Ancona, 49, recorre a um "erro" do escritor George Orwell (1903-50) para tentar compreender o que chama de era da pós-verdade.

Diz que a verdade está sendo relativizada e enfraquecida, mas não no totalitarismo, como previu o autor de "1984", e sim em plena democracia liberal, pelo que se tornou "a força dominante no mundo": a tecnologia.

"O poder de Facebook e YouTube é sem precedentes", diz d'Ancona, citando a influência dessas plataformas no "brexit" —o referendo que aprovou a saída do Reino Unido da União Europeia— e na eleição de Donald Trump como marco inicial da nova era.

Ele defende a regulação dos "gigantes", em defesa da democracia, mas nada que lembre o Ministério da Verdade orwelliano. "Um sistema autorregulado seria o ideal, mas, em geral, a autorregulação só acontece quando há ameaça de regulação externa."

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Folha - No livro, você afirma que o ano de 2016 lançou a era da pós-verdade. O que levou ao "brexit" e a Trump?

Matthew d'Ancona - Foi o ano em que muitos fatores se uniram. Eles estavam convergindo antes, mas 2016 foi quando a pós-verdade ganhou escala global. O "brexit" foi muito polarizador, como os referendos costumam ser. E o que o decidiu não foram fatos, mas o apelo emocional baseado em oposição a imigrantes, medo do islã, oposição à Europa continental, além de informações francamente falsas, por exemplo, sobre o dinheiro que o serviço de saúde receberia se o Reino Unido deixasse a União Europeia. Foi uma abordagem enganadora, mas eficaz.

Algo em comum com Trump?

Não acho que os eleitores americanos se surpreenderam com o fato de Trump ter uma relação tênue com a verdade. Mas, novamente, o que eles gostaram foi da conexão emocional. Ele se mostrou muito bom em apontar inimigos, fossem mexicanos ou muçulmanos, fosse Hillary Clinton. Muito bom em avivar ódio e hostilidade. E funcionou.

Tanto no 'brexit' quanto na eleição de Trump, tivemos a ressonância emocional como fator decisivo, em vez de fatos, da verdade. Isso criou um interesse geral pelo que ficou conhecido como pós-verdade.

Christian Moutarde/OCDE
Autor de
Autor de "Post-Truth", jornalista britânico Matthew d'Ancona participa de evento da OCDE em Paris

Como isso é diferente, por exemplo, da eleição na França ?

Muitas pessoas ficaram aliviadas com as eleições francesas, porque Emmanuel Macron era preferível a Marine Le Pen. Mas, para vencer, Macron teve de se afastar das instituições políticas tradicionais, criar seu próprio partido, e Le Pen teve muitos votos. Eu não fiquei tão aliviado.

Já a eleição britânica mostrou como a política hoje é incrivelmente instável. O líder trabalhista, Jeremy Corbyn, era considerado inelegível e, no entanto, fez uma campanha fantástica. Novamente, trata-se de ressonância emocional. Uma coisa que aprendi nos últimos 18 meses é que não é boa ideia fazer profecia em política.

Seu livro, em termos mais gerais, é sobre o valor cada vez menor da verdade e o avanço infeccioso do relativismo.

Existem dois elementos nisso. O primeiro é que a verdade é um valor sustentado por instituições, como o Parlamento, os tribunais, a imprensa. E houve, por todo o mundo ocidental, uma crise de confiança nas instituições.

Creio que no cerne disso está o colapso financeiro de 2008, que afrouxou a fé nas instituições que organizaram a economia global.

Segundo, porém mais importante, é que só estamos começando a nos acostumar com o que pode ser a maior revolução tecnológica da história. Ela transforma todos os aspectos de nossas vidas.

Eu pensei, quando a internet chegou, que ela incentivaria as pessoas a conversar com as outras, de diferentes culturas, origens, opiniões, que incentivaria o pluralismo e a compreensão. E ela o fez, até certo ponto, mas também proporcionou os meios para as pessoas formarem grupos que reforçam seus preconceitos.

O chamado efeito bolha?

As redes sociais são projetadas para isso. Seus algoritmos nos conduzem e incutem em nossos feeds de notícias coisas de que já gostamos.

Então, em vez de testar e submeter seus pontos de vista a questionamento, ocorre o contrário. A consequência é que a verdade se perde, e ocorre polarização. O papel da revolução digital em todo o processo do que chamamos de pós-verdade é enorme.

Você acredita que os passos dados por Facebook e outros contra a propagação de notícias falsas são úteis?

O que é encorajador é que, em menos de 12 meses, os gigantes de tecnologia mudaram dramaticamente sua posição. Antes, diziam não ter nenhuma responsabilidade; agora, tomam medidas, por pequenas que sejam. Mas eu acho que é só o início de uma prestação de contas que vai ter de acontecer.

O poder de Facebook, Google, Amazon e assim por diante é sem precedentes na história da troca de informações. Nossas leis e nossa cultura simplesmente não estão atualizadas para ele. Temos que descobrir como administrá-lo.

Como jornalista, o que menos quero é um Ministério da Verdade, como no "1984" de Orwell, um órgão oficial dizendo o que é verdade. O melhor caminho é a pressão pública, para levar os gigantes a reconhecer que eles são a mídia-chave em informação para o mundo, o que traz enorme responsabilidade.

Mas eles não reconhecem.

Se você fala com alguém do Facebook, ele diz: "Não somos editores, somos plataformas". Isso é nonsense. Teremos que refazer as leis que regem todo tipo de coisas, direitos autorais, limites da liberdade de expressão. É uma tarefa difícil.

Eu não quero algo que estrangule a liberdade de expressão ou que mate a criatividade da internet para o pensamento e o comércio. Mas, ao mesmo tempo, os gigantes tiveram um passeio na última década e precisarão agora se adaptar à mudança no clima. Um sistema autorregulado seria o ideal, mas, em geral, a autorregulação só acontece quando há ameaça de regulação externa.

Seu livro cita uma passagem de Orwell sobre a Guerra Civil Espanhola (da qual, por causa da quantidade de mentiras lançadas por ambos os lados, nunca se tiraria um relato histórico fidedigno) como premonitória.

É uma passagem fascinante, pois antecipa a questão. O que é intrigante sobre as profecias de Orwell é o quanto ele acerta, mas também o que erra. Vivendo em meados do século 20, estava apreensivo com o totalitarismo.

Mas o que houve é que a verdade relativizada e enfraquecida, que o preocupava, está acontecendo nas democracias liberais. E não é o governo que está fazendo, é a tecnologia. Ela é agora a força dominante no mundo.

Isso mostra que nenhum sistema político está à prova desses riscos. Desde o fim da Guerra Fria, nós, no Ocidente, ficamos complacentes, começamos a considerar a democracia uma certeza. Não é. Ela precisa ser protegida e nutrida.

A pós-verdade é um alerta sobre os perigos que podem ascender se você não proteger valores básicos.


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