Folha de S. Paulo


Rússia usou conteúdo feito por americanos para influenciar eleição

Vídeos do YouTube mostrando policiais espancando pessoas nas ruas dos Estados Unidos. Uma trapaça que circulou amplamente na internet sobre homens muçulmanos do Michigan que supostamente recebiam benefícios sociais para múltiplas cônjuges. Uma reportagem local sobre dois veteranos de guerra que sofreram um assalto brutal em uma noite gélida de inverno.

Tudo isso foi gravado, postado ou escrito por americanos. Mas o conteúdo se tornou parte de uma rede de páginas de Facebook vinculada a uma nebulosa empresa russa que realiza campanhas de propaganda para o Kremlin e que agora é vista como peça central de um vasto programa russo para influenciar a eleição presidencial de 2016 nos Estados Unidos.

Um estudo de centenas desses posts conduzido pelo "New York Times" demonstra que uma das armas mais poderosas usadas por agentes russos para reordenar a política norte-americana foi a raiva, a paixão e a desinformação que norte-americanos reais expressam em plataformas de mídia social.

As páginas russas —com nomes como "Sendo Patriótico", "Proteger as Fronteiras" e "Ativista Negro"— exploravam coisas como as queixas de um site conservador sobre agentes federais e um artigo lisonjeiro da revista "People" sobre um veterano de guerra tornado empreendedor. Elas usaram descrições e vídeos de agressões cometidas por policiais extraídas de contas genuínas do Facebook e YouTube, e os reproduziram, muitas vezes com ligeiras alterações executadas para maximizar os efeitos.

Outros dos posts encontrados nas páginas russas empregavam linguagem pouco fluente ou formas de expressão encontradas raramente no inglês usado nos EUA. Mas o uso de ideias e argumentos tomados de empréstimo aos americanos, e que já ecoavam entre os conservadores e os progressistas, demonstra uma compreensão precisa do panorama político americano.

Os russos também pagaram o Facebook para que este promovesse seus posts em feeds de usuários norte-americanos da rede social, para ajudá-los a testar que conteúdo circularia de forma mais ampla, e junto a que audiências.

"Estamos falando de hacking cultural", disse Jonathan Albright, diretor de pesquisa do Tow Center for Digital Journalism, na Universidade Colúmbia. "Eles estão usando sistemas que essas plataformas criaram para reforçar o engajamento. Querem alimentar a indignação —e é fácil fazê-lo, porque indignação e emoção são aquilo que as pessoas compartilham".

Todas essas páginas foram fechadas pelo Facebook nas últimas semanas, como resultado de uma revisão interna que a empresa esta conduzindo sobre a penetração russa em sua rede social. Mas o conteúdo e as estatísticas de engajamento de centenas de posts foram capturados pelo CrowdTangle, um sistema de análise de conteúdo de mídia social, e recolhidos por Albright.

Uma página russa de Facebook, chamada United Muslims of America [muçulmanos unidos da América], frequentemente postava conteúdo que ressaltava a discriminação contra muçulmanos.

Em junho de 2016, a página postou um vídeo gravado originalmente por Waqas Shah, de Staten Island, que trabalha produzindo vídeos on-line. Shah aparecia no vídeo usando um traje tradicional árabe e caminhando pela Union Square de Nova York, onde aparecia sendo empurrado e agredido verbalmente por outro ator, que fingia intimidá-lo, para ver qual seria a reação dos transeuntes.

O vídeo termina com Shah denunciando a hipocrisia de Nova York. A cidade afirma ser "um cadinho de raças", mas ninguém interferiu quando ele estava sendo agredido.

O vídeo original de Shah, postado no YouTube em junho de 2016, foi sucesso viral e atraiu mais de três milhões de visitas. Uma semana depois de ele o ter postado, a United Muslims of America copiou o vídeo para sua área de grupos sem o link original para o YouTube, um processo conhecido como "ripping". O vídeo de Shah se tornou o post mais popular da página russa, atraindo mais de 150 mil interações.

Shah disse que, quando percebeu o vídeo reproduzido sem crédito, ele escreveu ao administrador da página, pedindo que fosse instalado um link para seu vídeo original no YouTube. Sua preocupação principal, disse Shah, era que a página estivesse lhe roubando espectadores. Quando informado de que seu vídeo havia sido usado por contas russas envolvidas em esforços para promover a divisão nos Estados Unidos, Shah disse que não havia o que ele pudesse fazer quanto a isso.

"Sempre haverá pessoas que manipularão coisas a fim de promover suas agendas", ele disse.

Quando a página Being Patriotic postou uma breve mensagem no ano passado para mobilizar os americanos contra propostas de expandir o número de refugiados recebidos nos Estados Unidos, mais de 750 mil usuários do Facebook interagiram com o conteúdo. A mensagem terminou chegando ao feed de Len Swanson, 64, ativista republicano de Houston e ávido partidário de Donald Trump.

Swanson, que frequentemente posta comentários longos no Instagram e Facebook, usou a mensagem e foto que a acompanhava na abertura de um de seus posts de ataque a Hillary Clinton e aos democratas. A mensagem que Swanson tomou de empréstimo também aparece em um site de memes conservadores, acompanhada por uma foto que pelo menos um jornal atribuiu à marinha de guerra dos Estados Unidos.

"Usualmente publico artigos diversas vezes por semana, para levar adiante a narrativa", disse Swanson em entrevista. Ele não se incomodou, disse, por ter sido usado como uma peça na máquina de propaganda russa. "Nós fazemos exatamente a mesma coisa por aqui", disse Swanson, "Você acha o que, que somos santos?"

No começo de 2016, a Being Patriotic copiou e colou uma reportagem do site de conspiração InfoWars, afirmando que funcionários públicos federais haviam "se apoderado de terras privadas por uma fração de seu preço de mercado". A página russa acrescentou um comentário que não constava do original: "A nação não pode mais confiar no governo federal. Que desgraça!"

Agora que os legisladores americanos estão debatendo sobre regulamentação mais forte de empresas como o Facebook, a trilha deixada pelas páginas russas demonstra como será difícil expurgar qualquer influência estrangeira das redes sociais, ou mesmo dificultar as campanhas clandestinas de propaganda executadas em redes sociais pela Rússia, China e outros países.

Copiar conteúdo alheio sem a devida atribuição pode ser uma violação das normas das redes sociais. Mas o conteúdo em si —vídeos, posts e memes de Instagram copiados e compartilhados em páginas russas— não é explicitamente violento ou discriminatório, e por isso não viola as normas desses serviços. Na verdade, ele constitui exatamente o tipo de conteúdo envolvente pelo qual essas plataformas estão famintas.

A campanha russa também parece ter sido calculada de maneira a explorar as estratégias que companhias desenvolvem para manter o engajamento de seus usuários. O Facebook, por exemplo, estimulou seus usuários a interagirem mais em grupos como os estabelecidos pelos russos, nos quais os usuários poderiam "compartilhar de seus interesses comuns e expressar suas opiniões", em torno de uma causa comum. O site de contatos profissionais LinkedIn, controlado pela Microsoft, é organizado de forma a encorajar usuários como Swanson a postar artigos e outras formas de conteúdo.

"As estratégias não são mistério", disse Michael Strangelove, professor de cultura da Internet na Universidade de Ottawa. "As potências estrangeiras estão jogando dentro das regras que criamos para o jogo".

Um porta-voz do Facebook se recusou a comentar. O LinkedIn diz que o post de Swanson não violava suas normas de uso.

"Os desafios criados pela disseminação de notícias falsas e outras formas de conteúdo prejudicial por plataformas de tecnologia são sérios", disse Nicole Leverich, porta-voz do LinkedIn. "Nós patrulhamos ativamente quaisquer suspeitas de violação das normas de uso do LinkedIn, como assédio, perfis falsos e o uso de nossa plataforma para difundir desinformação".

Os russos parecem ter se insinuado nas plataformas de mídia social norte-americanas e empregado as mesmas ferramentas promocionais que as pessoas empregam para divulgar seus vídeos sobre gatos, queixas sobre companhias de aviação e diatribes pessoais. Muitos dos posts da Being Patriotic também recorrem aos recursos gráficos compartilháveis pré-produzidos por sites como o ConservativeMemes.com, usados em companhia de outras formas de conteúdo conservador produzido para compartilhamento em mídia social.

Com um empurrãozinho das contas russas, o material foi aceito rapidamente por outros usuários norte-americanos do Facebook, que o difundiram para uma audiência ainda maior. A presença russa parece se distribuir por diferentes plataformas: algumas das contas de Facebook, como a do Being Patriotic, têm contas conexas no Instagram e Twitter, de acordo com conteúdo removido mas capturado no cache do Google.

John Kelly, fundador da Graphika, uma empresa de análise de dados comerciais sediada em Nova York, disse que os russos parecem ter estratégia coerente nas diferentes plataformas. A Graphika identificou milhares de contas de mídia social cujo conteúdo se associa estreitamente a operações de informação russas, com a promoção de artigos e vídeos sobre a divulgação de e-mails roubados pelo WikiLeaks e de falsas teorias sobre o uso de armas químicas na Síria.

As contas russas se misturam a grupos reais de usuários do Facebook ou Twitter —de nacionalistas brancos a partidários de Bernie Sanders - e buscam manipulá-los e radicalizá-los, disse Kelly.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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